Fugas - Viagens

Rui Gaudêncio

O que é que Barcelona não tem?

Por Alexandra Lucas Coelho

Tem mar, tem montanha, tem arte, tem luta. Tem gente de todo o mundo e uma língua própria. E à volta, toda a Catalunha. Numa cidade assim, cada dia é uma cidade diferente. A Fugas escolheu um dia a pé, com um pulo de metro no fim

Barcelona: Promoções de voos e propostas de programas, 20.5.2011
A fantasia dos mercados,
por Luís Maio, 20.12.2008
A cidade dos parques esquisitos,
por Luís Maio, 23.05.2009
Barcelona entre chineses e cemitérios,
por Alexandra Prado Coelho, 05.03.2011

Hotéis | Barcelona deluxe
Barcelona vive-se bem das janelas do W, o hotel vela,
por Mariana Oliveira, 13.03.2010


Do Arco ao Umbráculo

A Primavera ainda não está aí. E portanto, golas para cima, se querem começar cedo. Nove da manhã, parece-vos bem? Nove da manhã, digamos, no Arco do Triunfo.

A coisa portuguesa mais parecida com o Arco do Triunfo de Barcelona talvez seja a Praça de Touros do Campo Pequeno, em Lisboa, aquele capricho neomudéjar em tijolo vermelho. Mas o Arco do Triunfo não tem shopping center nem touros, e mais do que uma praça é uma alameda que se pode descer tranquilamente a pé ou de bicicleta. De resto, como em quase toda a cidade, há centenas de bicicletas alinhadas no passeio, prontas a serem alugadas, género ponha-uma-moeda-e-saia-a-pedalar.

Então, nove da manhã, aquele frio em que a respiração parece fumo, e cá vão os barcelonenses para o trabalho ou para a escola com a pinta de quem já nasceu em cima da bicicleta. E pelo meio, raparigas a correr de fato-de-treino, pais com crianças de mochila pela mão, belos cães a serem passeados. Atrás de nós a montanha, lá adiante o mar. Ontem choveu e o sol sobe à nossa frente fazendo brilhar tudo. Não se ouvem carros, ouvem-se pássaros, muitos.

O Arco de Triunfo foi construído para ser a entrada da Exposição Universal de Barcelona em 1888, o momento em que a cidade se afirma voltada para a ciência, para o futuro. Gustave Eiffel chegou a oferecer aos organizadores o projecto da sua torre, mas eles acharam-na cara e esquisita, e optaram por fazer o Arco. No ano seguinte Eiffel foi ter com os organizadores da Exposição Universal de Paris, e deu o resultado que se sabe até hoje. Nunca mais ninguém a arrancou do lugar.

Vários edifícios da exposição de 1888 em Barcelona não sobreviveram. Mas quem não saiba não nota. Descendo a partir do Arco, a alameda desemboca no Parque da Cidadela, e logo do lado direito há todo um esplendor em ferro e vidro.

É o Hivernáculo, um pavilhão feito para abrigar plantas tropicais. E lá estão as plantas, se espreitarmos. Mas só podemos mesmo espreitar, porque está fechado. De longe, parece novo e reluz. Mas ao perto tem algo de abandonado.

- Está há um ano e meio em obras - diz um dos trabalhadores do parque que vai a passar, com o seu impermeável e as botas cheias de lama.

Em compensação, as laranjeiras estão exuberantes, carregadas de fruta. É toda uma alameda com bancos para sentar, ao longo da fachada do Museu de Geologia. Não é preciso ver a placa com o nome do museu, porque do lado de fora estão expostos granitos, calcários, basaltos, alabastros de vários tons e géneros, trazidos de todas as partes da Catalunha.

E de pedra em pedra chegamos ao Umbráculo, quase gémeo do Hivernáculo, mas com a grande vantagem de estar aberto. Enquanto o Hivernáculo é para entrar luz, o Umbráculo é para fazer sombra.

Tectos e paredes são de vidro com ripinhas de ferro horizontais, verticais e diagonais, o que dá um claro-escuro fantástico. E depois no centro estão as plantas, à volta das quais podemos caminhar ou ficar sentados, porque há bancos. É bom para tudo o que se faz em silêncio, ver, ler, conversar, namorar.

E agora, sob uma revoada de pássaros e com o sol atrás das costas, vamos sair pelo caminho que leva ao Born.

Do Born ao Gótico

O nome do bairro vem do antigo mercado de Barcelona. Hoje, o Born é uma espécie de Bairro Alto lisboeta, todo design, restaurantes e bares, com o charme da esquadria antiga. As ruas vão ficar mais estreitas à medida que nos aproximarmos do Bairro Gótico, mas aqui, nas redondezas da Rua Princesa, são amplas, com casas de tectos altos.

Seguindo pelo passeio da esquerda, começamos a ouvir João Gilberto, o que é sempre um bom motivo para entrar onde ele estiver. Neste caso, o White Bar, que além de bar-restaurante é um café aberto desde as 7h30.

Jarras com jarros brancos fresquíssimos, tectos negros e cadeiras brancas, pequeno-almoço com preços decentes (um café expresso com sumo natural, 2,5 euros, cereais com iogurte caseiro, 4,5 euros). Pãezinhos, bolos e compotas têm óptimo ar, mas só podemos falar pelo café, mesmo expresso, e pelo sumo, espremido na hora.

A rapariga loura e sorridente ao balcão é tão catalã como dezenas de outros empregados de balcão e de lojas em Barcelona, ou seja, nada. Além de estar cheia de estudantes Erasmus, a cidade fervilha de jovens alemães, italianos ou suecos que estão a começar carreiras. Esta alemã, por exemplo, é designer. E sugere que entremos na porta ao lado, que é o hotel associado ao bar, Chic&Basic/ Born (ver Onde ficar).

Dando a volta ao quarteirão, nas traseiras está o antigo mercado, edifício imenso, também de ferro e vidro, em correspondência com os que vimos antes e com a maravilhosa Estação de França, um pouco adiante. Neste momento está a ser recuperado, e não é possível entrar.

Rua do Born fora, lojas de ténis e bares, mas também prédios com as populares persianas de madeira por fora e vasos de sardinheiras. Ao fundo, a pedra escura de Santa Maria del Mar, formidável igreja gótica com pilares altíssimos suportando uma só nave. A sensação de espaço e a acústica são únicas. Em volta do altar, os pilares são como estrelas que tivessem baixado os braços. O sol está do lado direito, iluminando os vitrais coloridos. Cheira a incenso e às velas acesas a toda a volta, em copinhos vermelhos.

Da porta ao fundo vê-se um graffiti com a estrela da independência da Catalunha.

Saindo por aí, vamos perder-nos no bairro gótico.

Um café com livros em segunda mão e cheiro a tabaco: Lilipep. Adiante, a rua que leva ao Museu Picasso, com as suas muitas abóbadas de pedra. Deixemos os turistas nas filas, e voltemos a atenção para o museu quase em frente, que abre daqui a pouco, às 11h. Chama-se Museu Barbier-Mueller de arte pré-colombiana. Três pequenas galerias com peças prodigiosas, aztecas, maias, incas, amazónicas. Uma espécie de retiro no Novo Mundo, a mil anos de distância, que dá toda uma outra perspectiva ao nosso regresso à luz do dia.

Recuperamos então a Rua Princesa, passamos a Muralha Romana e chegamos à Praça da Catedral, cheia de sol e de velhinhos sentados. Está a ser restaurada. O claustro tem palmeiras, magnólias e uma fonte.

Na viela que vai dar ao Palácio da Generalitat, uma antiga professora canta música barroca. O som segue-nos até à Praça de Sant Jaume, onde além do governo da Catalunha está a Conesa, a mais célebre tasca de sanduíches quentes de Barcelona.

Numa versão de almoço rápido, podemos então comprar um bocadillo, continuar até à Praça Real e ficar ao sol a comer, entre estudantes deitados no chão.

Ou, se já conhecemos a Conesa, sair para a Rambla e ir petiscar à Boquería, o grande mercado vivo. Só os cogumelos, uma verdadeira paixão catalã, são toda uma refeição. Mas há presuntos, queijos, sumos, frutas. Grandes caixas cheias de pimentos padrón por um euro.

E já que estamos perto, espreitemos a programação do Teatro do Liceu, recentemente restaurado.

Do Raval à Gràcia

O que acontece se agora virarmos à direita? Vamos direitos ao Raval, o bairro das putas e dos imigrantes, que na parte baixa continua a ser das putas, mas sobretudo dos imigrantes (magrebinos, equatorianos, paquistaneses). Na parte de cima é outra espécie de Bairro Alto, menos "design" e mais alternativo.

A separação é a Rua do Hospital, que se chama assim porque era aqui que ficava o antigo hospital onde os recém-chegados a Barcelona ficavam de quarentena, fora das muralhas, no arrabalde daí o nome, Raval.

As varandas estão cheias de cartazes a dizer "O Raval não aguenta mais". Há todo um movimento que acha que o bairro está perigoso, degradado, que todos os dias há roubos e assim os turistas não vêm. Mas também há cartazes nas varandas a dizer aos turistas para se porem a andar. Barcelona tem os seus humores, para dentro e para fora. Os turistas são bons porque são dinheiro e são maus porque são uma maçada.

No pátio do antigo hospital há uma esplanada, gente a estudar e a escadaria de acesso à Biblioteca da Catalunha, que era a antiga enfermaria. Vale a pena subir, ver os arcos de pedra e as traves de madeira, e as fotografias históricas, com os doentes nas suas camas de ferro.

Voltando à Rambla, é uma boa hora para descer até ao mar. Como ainda é Inverno, o sol já está a pôrse sobre Montjuic, à direita, e a água brilha. Aqui, a Rambla del Mar é um passadiço de madeira que prolonga a Rambla. Uma espécie de falsa Rambla sobre a água.

E esquecendo o inferninho do shopping mais lá para a frente, género Docas, o melhor mesmo é aproveitar a madeira estar quente e o sol estar descoberto e ficar de cotovelos no passadiço, a ver as gaivotas boiar e o teleférico lá em cima.

São quatro e meia da tarde. Quando o passadiço se encher de mais, voltamos a terra firme e subimos ao Raval de cima, para ver as lojas de discos na Rua Tallers e pisar as tábuas rangentes da livraria La Central, na Rua Elisabets.

Para a esquerda fica o Museu de Arte Contemporânea, o MACBA, onde os skaters aproveitam o betão aberto da arquitectura. Talvez noutro dia.

É longe para ir a pé até à Gràcia, um dos antigos bairros operários de Barcelona, mas a Gràcia tem de entrar aqui. Portanto, metemonos no metro, saímos na estação de Fontana, vamos tomar um chocolate quente ao café La Nena (ver Onde comer) e podemos passar o resto da noite no bairro, entre restaurantes médio-orientais e os Cinemas Verdi.

Se temos a sorte de estar aqui alojados, a Gràcia também é um bom ponto de partida para périplos gaudianos: de manhã, para cima, o Parque Guell; à hora de almoço, para a direita, o estaleiro da Sagrada Família; à tarde, para baixo, as casas do Paseig de Gràcia, como La Pedrera e Batló. Todo um dia, outro dia.

Onde ficar

Chic&Basic
A Chic&Basic é uma pequena cadeia com cinco hotéis (dois em Barcelona, dois em Madrid, um em Amesterdão), dois hostels (Madrid e Barcelona) e vários apartamentos (Barcelona). No Chic&Basic/Born, entra-se como se fosse o átrio de um prédio: apenas um espaço de onde partem as escadas e o elevador. Mas do lado esquerdo há um pequeno balcão com um rapaz. E em frente, um espelho gigante, cortinas de tule branco, a fotografia de um beijo, orquídeas. Stephan Hansmann, o director holandês, não leva dois minutos a descer para uma visita guiada quando lhe telefonam do balcão a dizer que está ali uma jornalista. Enquanto subimos a escadaria de pedra, explica que o edifício é de 1888, o ano da Exposição Universal de Barcelona, e foi dividido em 31 quartos, além de uma sala comum com café e Internet.
A porta de cada quarto está tapada por uma espécie de cortina em círculo feita de cordas de plástico. Dentro do círculo, cada cortina está iluminada por um projector diferente: roxo, laranja, verde alface, azul violeta. O efeito é um corredor todo branco com focos intensos de cor. O objectivo é que as portas não se vejam. Para chegar a elas é preciso atravessar estas cortinas de franjas. O director abre a porta do que chama "um quarto médio". É todo branco. Os antigos tectos em gesso foram conservados, bem como os mosaicos no chão junto à janela, e a janela é a original, a dar para o Born. Tudo o mais foi radicalmente refeito.
O duche está cercado por vidro entre a cama e janela ("mas pode fechar-se esta cortina, para mais privacidade", exemplifica Hansmann). O lavatório fica de frente para a janela, o que significa que a rua aparece no espelho quando estamos a lavar os dentes. Só a sanita está num compartimento fechado. Em frente à cama há uma cortina luminosa parecida com a da porta, lá fora. Os hóspedes podem mudar a cor com um controlo remoto, consoante estejam num dia mais ou menos laranja.
Não há armários, só um bengaleiro e um chariot com caixas de arrumação. E, não tendo secretária, oferece duas soluções engenhosas: um puff triangular, que se pode pôr na cabeceira da cama como um encosto muito confortável para ficar sentado, e uma espécie de tabuleiro que assenta no colo, pensado para um computador portátil. É simples e funciona. A cama é cem por cento branca, com um colchão aparentemente soberbo, e na mesa-de-cabeceira está um "Welcome Pack" em papel de embrulho.
Stephan Hansmann despeja o conteúdo em cima da cama: um chupa-chupa, um sabonete feito para o hotel e um guia de Barcelona feito pelo hotel. Chama-se This is not another guide of Barcelona, mas é bilingue, espanhol-inglês. E são 170 páginas com um best of escolhido a dedo de restaurantes, bares, discotecas, lojas e mapas das zonas boémias, do Born à Gràcia. Não é um guia histórico nem cultural, mas é um bom guia para comer, beber e comprar roupa, sendo que no caso dos restaurantes o leque vai de menos de 20 euros a mais de 50. O Chic&Basic não serve pequeno-almoço, e daí a ligação ao White Bar, ao lado (ver texto principal). Quartos duplos a partir de cerca de 90 euros (na versão hostel, que é o Chic&Basic/Taller, duplos a partir de 60 euros - valores 2011).
www.chicandbasic.com

Casa Camper
Na zona do Raval há um outro hotel-conceito, o Casa Camper, que é a transposição da marca Camper para um hotel em Berlim e outro em Barcelona. Diferenças em relação a outros hotéis: o lobby só é acessível a hóspedes ou seus convidados; a única zona pública é uma espécie de restaurante buffet; cada quarto tem uma sala separada com mesa de trabalho, grande ecrã de TV e vista para um jardim vertical; o hotel usa energia solar e encoraja os hóspedes a andarem a pé ou usarem as bicicletas disponíveis. Quando a Fugas lá foi, a empregada na recepção mostrou-se inflexível: terminara a hora de visitas e já não era mesmo possível ver os quartos. Portanto, o que podemos dizer é que o Casa Camper nos foi muito recomendado e as fotografias no site dão vontade de lá ficar.
Duplos a partir de 192 euros (2011).
www.casacamper.com

Onde comer

Evidentemente, há centenas de restaurantes fantásticos em Barcelona, mas a verdade é que as nossas refeições memoráveis (duas) aconteceram fora de Barcelona, portanto o que se segue são três ou quatro pistas diferentes para picar algo e uma pista fora de Barcelona para comer a sério.

Almoço rápido

Conesa
Llibreteria 1
Praça Sant Jaume, Bairro Gótico
Consensualmente, as melhores sanduíches quentes (a partir de três euros) de Barcelona. Uma salinha modesta, com meia-dúzia de mesas lá dentro e por vezes filas enormes cá fora. É uma simples instituição familiar a que os turistas chamam um figo (os que sabem). Também tem saladas já prontas dentro de caixas de plástico.

Mercado da Boquería
Plaça de la Boqueria (Rambla)
Para petiscar de tudo e do melhor, sentado a um balcão, com um copo de vinho, no meio de todas as frutas, todos os peixes, todas as cores.

Lanche demorado

La Nena
Ramón y Cajal, 36 (Gràcia)
O chocolate quente é a sério em Barcelona. E neste café é chocolate puro derretido. Uma bomba para uma tarde de Inverno, com ou sem churros, com ou sem bolos.
Para mais fica no bairro mais maravilhoso de Barcelona e tem um ambiente género jovens casais com crianças, sendo que os casais podem ser hetero ou homo e as crianças de todas as cores, e, milagre, na parede há um cartaz a dizer "Aqui pode-se ler". Ou seja, não há música a tentar concorrer com as conversas ou com os livros.

Um copo antes de jantar:

D.O Vins i platillos
Verdi, 36 (Gràcia)
Fica ao lado dos Cinemas Verdi, os melhores da cidade, diz quem sabe. Um longo balcão com um gigantesco queijo parmesão para partir toscamente na hora. E vasta escolha de vinhos em bons copos.

Vegetariano

Mailuna
Valldonzella, 48 (Raval)
Este não experimentámos, mas tem boa pinta: além de pratos do dia com sobremesa e pão por seis euros, depois de comer pode-se fazer a sesta numa das salas.

Fora de Barcelona

Cal Travé
Carretera d'Andorra 56 (Solivella, Tarragona) Fica numa aldeia mas tem fiéis de toda a Catalunha. Lareira em destaque para assar carne, legumes, peixe, tudo magnífico, ainda a cheirar a brasas. A garrafeira inclui um vinho por ano para o qual o poeta Joan Margarit, mais que cliente fiel, amigo, faz sempre um poema. É um bom restaurante para quem for dar uma volta pela zona do mosteiro de Poblet. Cerca de 40 euros por pessoa, com entrada, prato, sobremesa e vinho.

O que comprar

Discos no Raval (Rua dos Tallers), e livros em toda a parte, por exemplo:

La Central
Elisabets, 6 (Raval)
A grande livraria de Barcelona, que na verdade são quatro, em diversos pontos. A maior é a do Raval.
Grande e boa.

Watergate
Vicenç Martorell 2 (Raval)
O lema é "Livros raros e estranhos para mentes insanas". E nisto cabe desde música pop a cinema, BD e política. Contra-cultura, resumiu o livreiro.

Altaïr
Gran Via, 616 (Eixample)
Tem fama mundial como livraria de viagens, e merecida. Livros em catalão e espanhol, mas muitos também em inglês, francês, alemão.
E ainda mapas, guias, utensílios, actividades e painel de mensagens.

--%>