Fugas - Viagens

Luís Maio

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Cemitério Père-Lachaise, o jardim-panteão de Paris

Em 1830 já havia 33 mil campas nomeadas, o que é um pouco menos de metade das concessões actuais. Julga-se que mais de um milhão de pessoas foi aqui sepultado e tantas ou mais cremadas, vindo as suas cinzas a ser guardadas no Columbário, ou mais recentemente (1986) disseminadas no Jardim da Lembrança. O Père-Lachaise é, portanto, uma verdadeira cidade dentro da cidade, que não parou de ganhar novos residentes desde que abriu, há mais de duzentos anos. Todo o espaço circunscrito pelos seus altos muros parece hoje ocupado e uma das perguntas mais frequentes é onde vão meter mais gente. Note-se que deixou de haver concessões perpétuas e para escolher esta última morada é preciso ser artista de mérito reconhecido, ou então ser parisiense e ter os meios necessários (sete mil euros custa a concessão anual nas avenidas principais).

O Père-Lachaise é, portanto, um cemitério VIP, onde não é qualquer um que se pode fazer enterrar. Acaba, porém, por ser vítima da sua própria fama, e nos últimos anos têm-se multiplicado os actos de vandalismo, incluindo o arranque de bustos e a amputação de conjuntos escultóricos. Quem quiser ouvir histórias picantes ou grotescas basta meter conversa com os coveiros, parte dos quais fala português com pronúncia do norte.

Ritos pagãos

A primeira sensação é de desorientação - nisso a cidade dos mortos é igual à dos vivos. A necrópole parisiense é tão vasta e as moradas célebres são tantas que não resulta fácil traçar um rumo, ou uma vez lá dentro saber onde se está. A maior concentração de personalidades históricas verifica-se no núcleo primitivo do cemitério, junto à entrada principal, que é mais compacto e labiríntico. À medida que se sobe dá lugar a um traçado mais rectiforme, com avenidas largas e rotundas, mas aí as distâncias passam a ser maiores e os pontos de interesse mais dispersos. Levar um guia ou pelo menos pedir um mapa (gratuito) à entrada é, portanto, de toda a conveniência. Mas perder-se voluntariamente, ou passar um par de horas a deambular ao acaso entre as campas, é uma excelente opção, talvez mesmo a melhor maneira de experimentar a aura mística deste jardim-panteão.

Seja o programa de visita mais ou menos organizado, o que depressa se percebe é que o Père-Lachaise tem as suas próprias personagens de culto, que não são forçosamente as mais óbvias. Claro que personalidades da classe intemporal de La Fontaine, Rossini ou Chopin têm as suas sepulturas bem cuidadas e continuam a atrair grande número de visitantes, incluindo grupos inteiros de excursionistas. Igual ou maior devoção merecem artistas ainda frescos na memória do público francês, como o cantor Gilbert Bécaud (1927-2001) e a actriz Marie Trintignat (1962-2003), estando as suas campas enfeitadas com oferendas, flores e até recortes de imprensa. Nada se compara, no entanto, à popularidade de que gozam Victor Noir (1848-1870) e Allan Kardec (1804-1869).

Quem, perguntará o leigo, foram esses dois, que quase século e meio depois de se finarem ainda atraem magotes de gente? Haverá outras causas, mas são fenómenos que passam muito pela recriação de antigas crenças e ritos pagãos. Victor Noir foi um jornalista, morto aos 22 anos em circunstâncias pouco claras por Pierre, sobrinho de Napoleão III. Durante algum tempo foi celebrado como mártir pelos republicanos, mas a razão pela qual a sua campa é hoje tão popular não tem nada a ver com isso. A "culpa" é de Jules Dalou, o escultor que imortalizou o jovem republicano numa estátua de corpo inteiro, como se acabasse de ter tombado no chão vítima do disparo e deixado cair o chapéu alto (que até ficou voltado ao contrário). Tudo isso é mesmo assim secundário e o que realmente faz figura é a protuberância que sobressai nas calças de Noir.

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