Fugas - Viagens

Luís Maio

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Trieste, a cidade-encruzilhada

Talvez não se perceba à vista desarmada, mas torna-se evidente consultando um mapa: um par de ruas para dentro, o traçado geométrico dá lugar a um emaranhado de ruelas sinuosas, mais conhecido como Città Vecchia (por oposição à de Maria Teresa). Lembra Alfama ou a Mouraria é o mesmo sortido labiríntico de edifícios medievais, estreitos e sombrios, encavalitados à volta de um outeiro amuralhado, e as semelhanças com Lisboa tornam-se mais gritantes quando se percebe que o alto da colina de S. Giusto era já um castro fortificado antes dos romanos, que o converteram em centro administrativo e religioso.

Há duas décadas foi aprovado um plano para transformar a Città Vecchia num enorme parque de estacionamento, mas, assim que começaram, as demolições esbarraram com achados arqueológicos. O estacionamento não avançou e desde aí a Città Vecchia tem vindo a ser reabilitada, convertendo-se numa zona de comércio e lazer, na maior parte livre de carros. É onde se encontram alguns dos melhores restaurantes, lojas de produtos locais e muitos antiquários, repletos de peças magníficas que recitam a história da cidade.

Natas de Viena

Uma cidade austríaca à beira-mar com uma cidade romana e medieval lá dentro. Uma cidade de emigrantes, que nela quiseram marcar território, rivalizando na excelência dos santuários edificados. As alturas no centro histórico de Trieste são assim dominadas pelas cúpulas de igrejas, como a católica Santo António Taumaturgo, as ortodoxas de San Nicolò (grega) e San Spiridione (sérvia) e o Templo Israelita uma das maiores e mais originais sinagogas alguma vez construídas.

Um cenário urbano tão peculiar funciona como íman natural para artistas e intelectuais. Trieste é também uma cidade com uma longa tradição cultural, sobretudo literária, que atingiu o auge em inícios do século XX. A atmosfera cosmopolita e decadente, que prenunciou o ocaso do império austro-húngaro, serviu de inspiração à poesia introspectiva de Umberto Saba, aos romances psicanalíticos de Ítalo Svevo, ou ainda a James Joyce, que viveu na cidade de 1904 a 1915 e de 1919 a 1920, nela redigindo algumas das suas páginas mais memoráveis. Mas a vida literária de Trieste não morreu depois desse apogeu e depois disso foi residência para escritores como Cláudio Magris, ensaísta especializado nos grandes dilemas da Europa, Fausta Cialente, retratista das comunidades de exilados (muito na linha de Svevo), ou Veit Heinichen, alemão que só escreve policiais tendo por cenário a cidade italiana onde veio a radicar-se.

O que todos estes escritores têm em comum é a paixão por Trieste e pelos seus cafés austríacos, dos quais hoje se conservam perto de uma dezena. Um dos indispensáveis é o Tommaseo, neoclássico e muito austríaco, estucado com ninfas de seios generosos e anjinhos musicais.

É sobretudo animado de manhã, quando se enche de "vamps" de cabelos brancos e tipos que parecem ser espiões reformados. Outro emblema da cidade é o Café San Marco, decorado com figuras de teatro (consequência da proximidade do Politeama), agora mais frequentado por "dandies" e diletantes, que marcam encontro para um copo de gin ao fim da tarde. Um rodapé, só para acentuar a costela paradoxal de Trieste: pois era no (ultra-austríaco) Café San Marco onde costumavam reunir-se os Irredentistas, que no início do século XX conspiravam a favor da integração em Itália.

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