Fugas - Viagens

Alain de Botton numa foto que integra o livro onde documenta a sua semana passada dentro do aeroporto de Heathrow

Alain de Botton numa foto que integra o livro onde documenta a sua semana passada dentro do aeroporto de Heathrow Richard Baker

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Leia o primeiro capítulo do novo livro de Alain de Botton, 'Uma Semana no Aeroporto'

2.

Embora os mundos do comércio e da arte tenham uma relação frequentemente difícil, mirando-se mutuamente com uma mistura de paranóia e desprezo, senti que seria grosseiro da minha parte declinar investigar a oferta que me foi feita simplesmente porque a companhia de ela onde veio administra áreas de restauração no lado ar e é anfitriã de tecnologias provavelmente causadoras da subida da temperatura do planeta. Sem dúvida que a companhia tem alguns esqueletos no armário, resultantes do seu desejo intermitente de despejar cimento em aldeias ancestrais e da sua perícia em nos encorajar a circum-navegar o globo em viagens desnecessárias, carregados com sacos de Johnnie Walker e ursos de peluche vestidos como guardas da rainha britânica.

Mas, já que o meu próprio armário também não está inteiramente isento de esqueletos, quem sou eu para julgar os outros? Entendi que o dinheiro acumulado no campo de batalha ou no mercado poderia muito bem ser redirigido para fins estéticos mais elevados. Pensei em como impacientes estadistas da Antiga Grécia gastavam os espólios de guerra na construção de templos dedicados a Atena e cruéis nobres da Renascença encomendavam alegremente delicados frescos em honra da Primavera.

Para além disso, mais prosaicamente, as mudanças tecnológicas pareciam estar a pôr fim a um longo e abençoado interlúdio, durante o qual os escritores conseguiram sobreviver com a venda dos seus livros a um público mais vasto, ameaçando o regresso de uma situação de inquietante dependência da generosidade de patrocinadores individuais. Ao contemplar o que poderia significar ser empregado por um aeroporto, animei-me com o exemplo do filósofo do século XVII Thomas Hobbes, que não se importou absolutamente nada de escrever os seus livros enquanto esteve a soldo dos condes de Devonshire, fazendo-lhes regularmente pomposas declarações nos seus tratados e até aceitando como prenda um pequeno quarto junto ao vestíbulo da casa dos mesmos em Devonshire, o Palácio de Hardwick. «Com toda a humildade, ofereço o meu livro a V. Senhoria», escreveu o mais subtil dos politicólogos ingleses ao arrogante William Devonshire ao apresentar-lhe o tratado De Cive, em 1642. «Que o Deus celeste lhe conceda muitos dias na sua passagem pela terra e muitos mais na Jerusalém paradisíaca.»

Em contraste, o meu patrono, Colin Matthews, director-geral da BAA, a proprietária do aeroporto de Heathrow, foi um dos patrões menos exigentes. Não me pediu nada, nem uma dedicatória, nem mesmo uma modesta referência às suas perspectivas no outro mundo. O seu pessoal chegou ao ponto de me dar licença explícita para ser inclemente quanto às actividades do aeroporto. Com tanta liberdade, senti estar a beneficiar de uma tradição segundo a qual um mercador rico enceta uma relação com um artista absolutamente preparado para que este se comporte como um bandido; não espera boas maneiras, ele sabe, e está semideliciado com a ideia de que o seu babuíno preferido partirá a louça. É precisamente nessa tolerância que reside a melhor prova do seu poder.

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