Fugas - Viagens

Alain de Botton numa foto que integra o livro onde documenta a sua semana passada dentro do aeroporto de Heathrow

Alain de Botton numa foto que integra o livro onde documenta a sua semana passada dentro do aeroporto de Heathrow Richard Baker

Leia o primeiro capítulo do novo livro de Alain de Botton, 'Uma Semana no Aeroporto'

Por Alain de Botton

Alain de Botton foi convidado a passar uma semana no aeroporto londrino de Heathrow e a escrever sobre o assunto. O célebre "filósofo do quotidiano" não se fez rogado e aí está "Uma Semana no Aeroporto - Um Diário de Heathrow". Em Portugal, pela Dom Quixote, acaba de sair a tradução da obra, da qual publicamos aqui uma primeira parte: é em jeito de introdução e intitula-se "Aproximação".


A magia dos aeroportos  segundo Alain de Botton
Por Luís Maio 23.05.2011

 

I. Aproximação

1.

Embora a pontualidade esteja no cerne do que tipicamente entendemos como uma boa viagem, muitas vezes desejei que o meu voo estivesse atrasado, para ser forçado a passar mais algum tempo no aeroporto. Raras vezes partilhei esse sentimento com outras pessoas, mas no meu íntimo ansiei por uma fuga hidráulica no trem de aterragem ou por uma tempestade no golfo da Biscaia, um banco de nevoeiro em Malpensa ou uma greve inesperada na torre de controlo do aeroporto de Málaga (famoso na indústria tanto pelas suas intempestivas relações laborais, como pelo modo imparcial como comanda a maior parte do espaço aéreo mediterrânico). Ocasionalmente, até já desejei um atraso tão grande que me fosse oferecida uma senha de refeição ou, ainda mais drasticamente, uma noite paga pela companhia aérea numa caixa de Kleenex em cimento gigante, com janelas fixas, corredores decorados com fotografias nostálgicas de aviões a hélice e almofadas de espuma imbuídas dos odores distantes do querosene.

No Verão de 2009, recebi um telefonema de um homem que trabalhava para uma corporação proprietária e operadora dos aeroportos de Southampton, Aberdeen, Heathrow e Nápoles, para além de supervisionar as áreas comerciais dos aeroportos de Boston Logan e de Pittsburg International. Essa corporação também controla grandes nacos da infra-estrutura industrial em que se baseia a civilização europeia (no entanto, raras vezes pensamos nela enquanto usamos uma casa de banho em Bialystok ou conduzimos um carro alugado em direcção a Cádis): a empresa de gestão de resíduos Cespa, o grupo de construção civil polaco Budimex e a empresa concessionária das auto-estradas espanholas.

A pessoa que me telefonou disse-me que recentemente a sua companhia tinha desenvolvido um interesse por literatura e que tinha decidido convidar um escritor para passar uma semana no seu mais recente centro de passageiros, o Terminal 5, situado entre as duas pistas do maior aeroporto de Londres. Esse artista, logo pomposamente denominado como o primeiro escritor-residente de Heathrow, teria como função fazer um levantamento impressionista das instalações e, depois, à vista de todos os passageiros e do pessoal, juntar material suficiente para um livro a ser escrito numa secretária especialmente colocada para o efeito na área das partidas, entre as zonas D e E.

Pareceu-me espantoso e comovedor que, na nossa era distraída, a literatura ainda tenha suficiente prestígio para inspirar uma empresa multinacional, geralmente focada na gestão de taxas de aterragem e efluentes, a subscrever um projecto investido de tão elevadas ambições artísticas. A verdade é que, como me disse ao telefone o homem da companhia aeroportuária, com um lirismo tão vago quanto sedutor, o mundo ainda tem muitas facetas que talvez só os escritores consigam encontrar as palavras certas para as descrever. Uma brochura luxuosa de marketing, embora nalguns contextos seja um instrumento de comunicação de suprema eficácia, talvez nem sempre transmita a autenticidade passível de ser conseguida pela voz de um autor - ou, como o meu amigo sugeriu com maior concisão, pode ser mais facilmente descartada como «lixo».

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