"Périplo - Histórias do Mediterrâneo" é o título de uma série documental de Camilo Azevedo escrita por Miguel Portas e Luís Leiria e transmitida pela RTP2. Para a Fugas, Portas e Leiria resumiram algumas das histórias e paisagens da produção. Neste "episódio", a viagem passa por Palermo, Istambul e Nápoles. As fotos são de Camilo Azevedo.
PALERMO
Numa ruela vizinha à catedral de Palermo, um pequeno teatrinho de marionetas exibe, em sessões contínuas, a mais conhecida das canções de gesta medievais. A partir de certo momento, o que parece ser uma inocente história de amor impossível mergulha na mortandade. Não há mouro que resista às espadas cristãs. A plateia, escassa, aplaude, decerto por misericórdia. Afinal, os manipuladores fazem honestamente pela vida, ressuscitando uma tradição siciliana e um poema que correu mundo na época das cruzadas. Os 4002 versos da Canção de Rolando nada devem, contudo, a Palermo, a primeira paragem deste périplo por algumas das principais cidades do Mediterrâneo.
Na verdade, Palermo é a mais “muçulmana” das cidades italianas. Fundada por navegadores cartagineses no século VIII a.C, será, como todo o Mediterrâneo, romanizada, mas sem grande brilho. Só voltaria a prosperar com a conquista árabe, em 831, que a tornou um importante centro de comércio com o Norte de África. Palermo tinha “sarracenos”, portanto. Muitos. Mas quando, em 1072, os mercenários normandos Roger I e Robert Guiscard, vindos do que é hoje a França, a
conquistam, o que se segue não é a expulsão de uma comunidade então maioritariamente islâmica. A nova corte católica vai ser frequentada por muçulmanos, hebreus e ortodoxos.
A arquitectura medieval da capital siciliana ainda hoje ilustra esse singular casamento entre artistas de distintas confissões. É o caso da sua catedral, um edifício híbrido, que ficou conhecido como exemplo de arquitectura “normanda sarracena”: decoração mourisca, interior barroco, e túmulos de reis normandos erigidos ao estilo romano-bizantino... Mas são sem dúvida as três cúpulas vermelhas da igreja de San Cataldo que surpreendem o visitante desprevenido que, por um momento, se pode imaginar em terras de Oriente. Ao lado, a Martorana é uma igreja fundada em 1143 pelo almirante da frota de Roger I, Georges de Antioquia. Este, apesar de criado na fé ortodoxa, mandou-a desenhar como se de uma mesquita se tratasse...
A capela Palatina
A capela do Palácio Real de Palermo eleva aos píncaros a mistura de referências. Os pavimentos de mármore são latinos, de influência franco–romana; os tectos de madeira, muito refinados, assim como os arcos, são islâmicos; e as paredes, revestidas a mosaico, são bizantinas.
O resultado não será uma das sete maravilhas do mundo, mas é o mais excessivo que presenciámos. A capela de todas as vaidades condensa uma cidade, Palermo; e um mundo, o Mediterrâneo, em plena Idade Média. É a capela de uma corte normanda em pleno século XI, desafiando as leituras que resumem a Idade Média a uma «guerra santa» da cristandade contra o mouro e o sarraceno.
Claro que Rogério II, o primeiro a conseguir reunir os domínios da Sicília num só reino, nos diria que a sua capela se ergueu em honra do Criador. Mas a mistura de estilos celebra, acima de tudo, a inteligência do seu patrono e dos que lhe sucederam. Como Fredrico II, imperador do sacro Império, de origem germânica mas nascido em Palermo, e também rei da Sicília. Este imperador passaria à história por dois feitos quase impensáveis à época: ser excomungado por não se interessar por cruzadas; e reconquistar Jerusalém sem travar uma só batalha.
Fredrico II ocupa um lugar de relevo entre os personagens da história do Mediterrâneo. Era um homem culto que falava diversas línguas, entre as quais o árabe, dominava muitas artes e desenhava os inúmeros castelos que mandou erguer. Contava com um poderoso exército sarraceno de cerca de 10 mil homens, e até a sua guarda pessoal era muçulmana. Este imperador manteve durante anos uma correspondência secreta e amistosa com o sultão do Egipto, al-Kamel, sobrinho do então já falecido Saladino, com quem discutia assuntos como a génese do Universo, a imortalidade da alma ou a lógica de Aristóteles...
As catacumbas dos capuchinhos
Cidade-mosaico, Palermo não se esgota no seu centro medieval. É uma urbe viva, alegre, orgulhosa. O viajante pode deixar de lado o seu centro moderno, que é banal, e não deve desesperar com o trânsito caótico. “Faz e deixa fazer”, parece ser a consigna dos automobilistas. E ninguém tenta dar lições de código de estrada ao condutor do lado.
Aproveite então para se deslocar aos arredores, até às catacumbas da Igreja dos capuchinhos. A experiência recomenda-se apenas aos espíritos resistentes. Estas catacumbas lidam com a morte. Expõem-na e exibem-na. Cerca de oito mil múmias, vestidas, de homens, mulheres e crianças, da aristocracia, da burguesia e do clero de Palermo, aí foram guardadas entre os séculos XVI e XIX. Penduradas nas paredes ou deitadas em estantes, como se de uma biblioteca mórbida se tratasse.
Ninguém, e muito menos os frades da congregação, explicam o porquê desta casa mortuária. Tributárias da filosofia grega, as tradições islâmica, judaica e cristã ligam mais à alma do que ao corpo. No caso do Islão, este, amortalhado em pano, é simplesmente lançado à terra. Não há, sequer, a protecção de um caixão. O que do barro nasceu, ao pó regressa. Esta é a regra.
ISTAMBUL
Entre oriente e ocidente
Contudo, em Istambul – literalmente, A Plenitude do Islão – não é bem assim. Os corpos são sepultados na terra após o derradeiro adeus dos vivos. Mas por cima erguem-se túmulos decorados. Tal como em Palermo, também aqui a aristocracia e a burguesia otomanas reclamaram o seu direito a algo mais do que sete palmos de terra. Os jazigos de pedra têm estelas. Para mulheres, com decorações florais; e para homens, com turbantes. Talvez não se trate de vaidade. Talvez em Istambul se esteja ante um resgate e um recado. Os cemitérios das elites de Istambul apropriam-se, afinal, de mil anos de história cristã. E talvez nos queiram dizer que o paraíso se encontra, como a própria cidade, algures a meio caminho entre Oriente e Ocidente.
Quando hoje tanto se escreve sobre o pedido de adesão da Turquia à União Europeia, talvez um pouco de História ajude a compreender melhor a legitimidade de um pedido formulado, pela primeira vez, há 40 anos.
Antes de ser Istambul, a cidade foi Constantinopla. E antes desta, Bizâncio. A sua localização – onde o Mar da Mármora se encontra com o Corno de Ouro, o braço de água que liga o Mediterrâneo ao Mar Negro – é excepcional. Foi a geografia que colocou a cidade no cruzamento de todas as rotas terrestres entre Oriente e Ocidente.
Vítima do seu sucesso, Constantinopla estendeu-se para a ilha que lhe fica em frente, Pera. No século XIV, os imperadores entregaram-na a mercadores genoveses, em troca de protecção contra a república de Veneza. Mas, nesta altura, as fronteiras do antigo Império de Oriente já coincidiam com as da própria cidade. A cidade é o Império. Ou o que dele resta. A sua população é, também, extraordinariamente flutuante. A espantosa muralha bizantina, de 25 quilómetros de extensão e ainda visível em muitos dos seus troços, chegou a albergar centenas de milhares de pessoas.
Constantinopla foi a única megalópole que a Idade Média produziu.
Os califas europeus
Esse perfil não se alterou durante os 600 anos de califado otomano. Na viragem para o século XX, Istambul tinha um milhão de habitantes, tanto como Paris. A sua população não era, sequer, maioritariamente turca. E as comunidades tinham os seus bairros com administração própria. Saindo um pouco do centro e acompanhando o Corno de Ouro, há um bairro de casas de madeira onde a comunidade de origem grega viveu até aos anos 20 do século passado. Está muito degradado e quase desabitado. É aí que ainda se celebram os ofícios do patriarcado ortodoxo, embora sejam mais os oficiantes do que os assistentes. O canto gregoriano é uma saudade e o bairro uma melancolia. Mas ambos lembram como se vivia. No Palácio dos califas, o Topkapi, uma outra variante desta história de encontros e desencontros se pode contar.
Diga-se, de passagem, que o melhor do Palácio são as suas vistas sobre os mares. No mais, impera o duvidoso gosto otomano. Mas aí se encontram várias colecções de fausto e poder. Uma das mais visitadas é o relicário. É estranho que o Islão, que nunca admitiu a figuração, se insinue pelos caminhos do paganismo. Mas mais singular ainda é que nesse relicário se encontrem não apenas os cabelos e dentes do profeta Maomé, como a espada do rei David... ou o bastão em que Moisés se teria apoiado para guiar o “povo eleito” em direcção à terra prometida.
Praticamente ao lado do relicário está o harém. Hoje, as pessoas associam os haréns aos árabes. Na realidade, a sua história é bem mais antiga e remonta aos gineceus gregos e romanos – os espaços da casa estritamente reservados às mulheres e seus guardiões, os eunucos. Os turcos de Otman não descobriram nada. Praticavam a poligamia mas desconheciam o harém. Este existia, isso sim, entre os imperadores Constantinos. Quando Methmet II conquista a cidade, a sua mãe, que era cristã, somou dois e dois e o harém otomano não é senão uma combinação de duas poderosas tradições do poder masculino. E no entanto... as mulheres vingaram-se. A grande maioria era europeia. E foi nos seus ventres que se geraram os califas. Aqui chegado, adivinha-se a conclusão: os califas eram filhos de mulheres europeias. Certo.
Assim como o corpo militar e administrativo do império otomano, recrutado nas aldeias e cidades da Europa, e educado em escolas especiais. Estes escravos ao serviço do califado, os janíssaros, formaram uma temível casta e eram tão “europeus” como qualquer um dos autores deste artigo. Quando em Istambul assistir a uma exibição de derviches, lembre-se que os rodopios estonteantes não são apenas de bailarinos. São uma dança mística que deve muito à história antiga que acabámos de contar.
Santa Sofia e a sabedoria
Mesmo ao lado do Topkapi situa-se a praça de Santa Sofia. Aí esteve, sempre, o centro. Ágora grega, Fórum romano e hipódromo bizantino, ainda hoje aí se concentra grande parte dos monumentos de uma História milenar. Da belíssima cisterna romana ao palácio do grão vizir, passando pela mesquita azul ou pelos obeliscos transladados do Egipto, a sugestão é que o visitante se concentre na mesquita que um dia foi igreja e se dedicou à sabedoria, ou seja, a Santa Sofia. Ela precede, em mil anos, as extraordinárias obras de Sinan, o arquitecto das mesquitas e minaretes que desenham o topo das colinas de Istambul. No seu interior disponha de todo o tempo. Aí se podem perceber algumas das diferenças entre decoração cristã e muçulmana. Com efeito, ambas usam materiais ricos. Mas enquanto a primeira os utiliza para diminuir a Humanidade ante a grandeza do Criador, a segunda faz da discrição um apelo ao recolhimento, ou seja, à relação directa entre crente e Alá. Estas duas almas ainda hoje coexistem na Turquia, um país inventado sobre os escombros do Império otomano nos anos que se sucederam à I Grande Guerra. Surpreenda- se ainda o leitor: tal como o califado no século XIX, também os militares que fizeram nascer a Turquia tinham os seus olhos postos na Europa. Era daí, da Europa, que vinham as ideias socializantes, a igualdade entre os sexos e a separação radical entre Estado e religião. Era até daí que vinha a ideia de que seria a ferro e fogo que se poderia impor o progresso... Istambul, como Lisboa, é uma cidade de luz. Tal é a magia que os reflexos das águas impõem à obra dos homens. É também a cidade dos momentos em que o Sol se esconde e em que o mais empedernido dos corações se enternece.
Os mosaicos de Chora
O mosteiro de Chora, a que os locais chamam a "mesquita da igreja", vale uma visita. É pequeno e tem frescos e mosaicos do século XIV, que o gesso dos conquistadores otomanos preservou até hoje. Se os frescos são "clássicos", já os mosaicos têm a singularidade de narrar os eventos bíblicos recorrendo aos evangelhos apócrifos. Como o tema anda na moda, é curioso ver como se ilustrava a infância e crescimento da mãe de Jesus, ao lado de outras histórias mais canónicas, como a da morte dos primogénitos decretada por Heródes. Mas pode-se ir sempre para lá da curiosidade e tentar perceber como foi nos mosaicos que melhor se espelhou a divulgação da nova fé entre os pagãos. O desenho e a palavra substituindo a literatura; e adaptando a nova fé aos preceitos e tradições pré-cristãs.
NÁPOLES
Protegida pelos deuses
Em pleno século XVII, os jesuítas ainda tentavam calcular o número de condenados ao Inferno. Faziam-no em Nápoles, onde as irrupções vulcânicas, as pragas e as catástrofes eram consideradas castigos de Deus. Dominada pela presença ameaçadora do Vesúvio, estas visões apocalípticas tinham tanto de sentido, quanto de ignorância.
O poeta romano Virgílio faz, na “Eneida”, uma descrição da boca do Inferno que corresponde rigorosamente à realidade dos Campi Flegrei, nas proximidades de Nápoles. Uma visita à sua Sulfatara, a principal cratera desta área, é suficiente para compreendermos como essa visão pode tomar formas reais num território abrasador onde impera um cheiro sufocante e de onde emanam jactos de vapor a temperaturas dignas do inferno.
Quem vive à guarda de um vulcão irrequieto, precisa de argumentos para ficar. Por isso, Nápoles tem todos os que a Natureza conseguiu imaginar. Estende-se sucessivamente em baías guardadas por montes e colinas. É uma espécie de Rio de Janeiro do Mediterrâneo, com toda a história deste mar.
O primeiro símbolo desta cidade é uma sereia, Parténope, que, diz a lenda, morreu de amores por Ulisses e por causa disso vagueou no oceano até dar à costa. Nápoles foi fundada há cerca de 2500 anos por navegadores e comerciantes gregos. O grego ainda era a língua franca nos séculos XI e XII.
O segundo símbolo de Nápoles é um ovo encantado, que se encontra no castelo que guarda a baía, na ilha de Megaride. O Castelo do Ovo abrigaria um ovo mágico que lá teria sido depositado pelo próprio Virgílio. Se alguma vez for danificado, a ilha e a cidade serão destruídas, assegura o mito... Mas nenhuma destas histórias fantásticas se compara à do sangue de São Gennaro, um mártir do século IV. O sangue, guardado numa ampulheta, é um coágulo que todos os anos no santo dia do dito cujo, se liquefaz, como promessa e garantia de que a vida, afinal, continua...
Esta cidade, que ainda mantém a traça grega do seu casco velho, foi normanda, germânica, aragonesa, espanhola, e até austríaca. Mas Nápoles tem também a energia e a confusão das cidades dos novos mundos. Velho e novo convivem porta a porta. Os grandes palazzos aristocráticos do centro estão hoje divididos em apartamentos, alguns bem pequenos, adaptados ao gosto do locatário. Nas ruas, onde menos se espera, surgem pequenos sacrários com imagens de santos. Ou um presépio. Mas ao lado, pode estar a entrada de um café de jazz, um alfarrábio ou até um centro social autogerido por jovens alterglobais.
A Praça do Plebiscito é outra metáfora da cidade. Destinada a celebrar a restauração da monarquia, abalada pelas tropas de Napoleão Bonaparte, a mais ampla das praças de Nápoles foi concebida para exibir o poder. Hoje, é o lugar eleito para os casamentos. Aos domingos, aí e à beira-mar, ocorrem verdadeiros desfiles de matrimónios populares. Nápoles, protegida dos deuses, é, definitivamente, coisa antiga com futuro.
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Histórias do Mediterrâneo I: Cidades do mar, cidades do encontro
Histórias do Mediterraneo II: O caminho das areias
Histórias do Mediterraneo III: O mar dos milagres