Fugas - Viagens

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  • O Nilo, ao contrário do Tigre e do Eufrates, sempre foi um rio previsível. As cheias chegavam sempre entre Junho e Setembro
    O Nilo, ao contrário do Tigre e do Eufrates, sempre foi um rio previsível. As cheias chegavam sempre entre Junho e Setembro Camilo Azevedo
  • Baía de Alexandria, no Egipto. A cidade ficou célebre pelo seu farol e pela sua biblioteca, a principal do Mundo Antigo
    Baía de Alexandria, no Egipto. A cidade ficou célebre pelo seu farol e pela sua biblioteca, a principal do Mundo Antigo Camilo Azevedo
  • Plataforma dedicada a Apolo, em Cirene, na Líbia oriental
    Plataforma dedicada a Apolo, em Cirene, na Líbia oriental Camilo Azevedo
  • Souk da cidade de Alepo, no Norte da Síria
    Souk da cidade de Alepo, no Norte da Síria Camilo Azevedo

Histórias do Mediterraneo III: O mar dos milagres

Por Miguel Portas e Luís Leiria

Em mais uma série de etapas do seu périplo, Luís Leiria e Miguel Portas conduzem-nos através da fascinante memória do Mediterrâneo. Começando em Mari, velha cidade suméria junto a um Eufrates, continuando em Assuão, no Egipto, divergindo depois para Alexandria e para a Líbia Cirenaica, os autores mostram-nos como a História do Mediterrâneo se "serve em camadas sobrepostas". E como, para além dos testemunhos patrimoniais, se percebe que a sua civilização "combina prazer e poder, deleite e triunfo". Camilo de Azevedo fotografou a peregrinação.

Durante muito tempo, a fronteira entre os povos ditos bárbaros e os civilizados foi traçada pela cultura grega. Só no primeiro quartel do século XIX, Napoleão e as suas campanhas militares puxaram o país dos faraós para o clube dos eleitos. De fora, do lado dos "bárbaros", ficava ainda a Mesopotâmia. A injustiça só foi reparada quando, em 1930, no museu de Pergamon, em Berlim, foi apresentada a reconstituição de uma das sete portas da Babilónia. É aí, no centro de Berlim, que se encontra a porta de Ishtar, uma deusa bipolar, que tanto servia a causa da guerra, como as do sexo e do amor.

Juntamente com a porta, o museu reconstituiu a via que lhe dava acesso. A original era três vezes mais larga e oito vezes mais comprida. Mas os leões que a decoravam é em Berlim que se encontram. Os babilónios davam a esta avenida o nome de Ibu Sabu, literalmente "Que não floresça o orgulho". No caso, trata-se de excesso de modéstia. Na realidade, o grande contributo da Mesopotâmia para as civilizações contemporâneas foi "apenas" a invenção da cidade e do urbanismo.


MARI
Junto ao Eufrates

De Berlim para Mari, uma cidade suméria no Eufrates, o salto é o da imaginação. Onde, no museu, o visitante pode apreciar fragmentos de paredes de adobe revestidas a cones, em Mari contenta-se com aquelas, inteiras, mas despojadas de ornamento. Em contrapartida, tem o prazer de se passear entre muros e paredes de terra com cinco mil anos e cinco metros de altura...

Mari foi erguida a três quilómetros do Eufrates, em terra hoje desértica. Mas, ao contrário do que se possa pensar, na Antiguidade não havia falta de água. As cidades do Centro e do Sul da Mesopotâmia localizavam-se em planícies que, devido às cheias, eram pantanosas. A maioria da população vivia em barcaças e habitações precárias. É estranho visitar um sítio arqueológico sem ponta de verde e imaginar, aí, uma vida de rio do Extremo Oriente...

Os grandes templos - as casas de deuses que viviam na Terra -, o palácio e casas de famílias influentes eram as únicas a elevarem-se acima do nível das águas, assentes sobre colinas artificiais a que se deu o nome de tell's. O olhar desprevenido também não percebe isso à primeira. Precisa de explicador. E antes deste, de quem, com infinita paciência, escave camada por camada, até se entender a escala e o pormenor da acção humana que a terra escondeu. Visitar Mari não é, por isso, o mesmo que passear por uma cidade medieval. Ali, as paredes estão enterradas nas entranhas do tell, escondidas do céu e do vento. Não existem os fantásticos mosaicos que se podem apreciar nos museus do ocidente - tudo é monocolor. E, contudo, é uma revelação. Há cinco mil anos, Mari já desviava cursos de rio e fazia canais entre este e a cidade.

O domínio das águas comandava a vida. Porque se o Eufrates é hoje um rio sonolento e preguiçoso, tal fica a dever-se a um megalómano programa de barragens que a Turquia e a Síria vêm pondo em prática nas terras de montanha e nos altos planaltos que ele atravessa. Nascidos nas montanhas do Curdistão, o Tigre e o Eufrates são alimentados por neves eternas. Eram, portanto, rios selvagens, poderosos e imprevisíveis. Quando chegavam às planícies da actual Síria e do Sul do Iraque alagavam as terras, espalhando os sedimentos que enriqueciam o solo.

Não é por acaso que a Bíblia situa o episódio do dilúvio nestas paragens. Este podia surgir quando menos se esperava. Aliás, o dilúvio era narrado em epopeias bem anteriores à do Velho Testamento. E envolviam deuses tão coléricos e imprevisíveis quanto as águas que os viram nascer. Os escritos antigos falam da criação da Humanidade por Deus. Sobre essa viagem não nos pronunciamos. Nesta, o que descortinamos são deuses inventados pela Humanidade à luz da Natureza que os acolhe.

Quem siga o curso do Eufrates dificilmente contém a irritação. Acabaram-se as árvores e os pântanos. Acabam-se até os pescadores. O rio desolado pertence aos patos onde as margens ainda apresentam linhas de canaviais. Ao longo das margens ainda existe agricultura. Mas as terras estão cobertas por finas camadas de sal... apesar dos mares se encontrarem a centenas de quilómetros. O Eufrates dos nossos dias é consequência de uma ideia de progresso refém das estreitezas nacionalistas que desdenha os equilíbrios ecológicos. A Turquia, e em seguida a Síria, julgaram-se no direito de resolver os seus problemas de electrificação à custa da penúria de água do Iraque. É assim que nascem as guerras. E é assim que a própria agricultura sela o seu destino.


ASSUÃO
No outro grande rio

Em Assuão, no Sul do Egipto, o Nilo é sulcado por falucas silenciosas, as barcas de vela latina que permitem navegar contra o vento. Por aqui, também o Nilo é a origem de todas as formas de vida. Se no Eufrates relatos antigos cantavam o dilúvio, também no Nilo a Humanidade amassada em barro precede os mitos da criação bíblica. Já se vê, nestes rios nasceram antes dos profetas, os fundamentos das religiões do Livro. Mas algo de essencial separa o Nilo dos rios mesopotâmicos: a sua previsibilidade. A garantia de que as cheias chegavam sempre entre Junho e Setembro fará toda a diferença.

Assuão é a principal cidade do Sul do Egipto. No centro, é um animado mercado a céu aberto. Nos arrabaldes, a cidade cresce de qualquer maneira. Apetece pensar que foi sempre assim, que esta é a história de todas as cidades do Nilo. Porque o Egipto é o país de um rio. Um país que se estende pelas suas margens, e que raramente delas saiu. Na Mesopotâmia, a violência do Tigre e do Eufrates fizeram precárias as cidades e difícil a formação dos impérios. No Egipto, pelo contrário, a regularidade das cheias unificou um país. O regime dos faraós durou quatro milénios...


O Templo de Philae

O Nilo, que um capricho da natureza fez percorrer 3200 quilómetros sem que o Sol o esgotasse, fez dos egípcios camponeses exímios. Em frente a Assuão, numa pequena aldeia que se fina contra as primeiras areias do deserto, ainda hoje os fellahs trabalham o regadio, recorrendo à tracção animal e a técnicas e saberes muito antigos. Nesta aldeia só uma parabólica dá notícia de uma dissonância. O que mudou foi a electrificação. E a dignidade que ela trouxe consigo. Esta é uma história recente, com 40 anos, mas que no Egipto parece digna dos feitos faraónicos.

Após a independência, a decisão de construir a grande Barragem de Assuão transportou o país para o século XX. As obras duraram 10 anos e, nestas, centenas de operários perderam a vida. Entre as medidas então tomadas, conta-se a trasladação de grandes monumentos que seriam afogados pela barragem. Um deles, o gigantesco Templo de Abu Simbel, exige que a viagem prossiga um bom pedaço para sul. Outro, o Templo de Philae, fica mais próximo da cidade e é uma pérola. Quem chegue a Assuão não deve prescindir deste prodígio de equilíbrio e subtileza arquitectónica rodeada de água por todos os lados. Ao mesmo tempo, a visita à Casa de Ísis presta homenagem à deusa que elevou o amor à condição de milagre.


O mito de Ísis e Osíris
Ísis era irmã e mulher de Osíris, o rei que ensinou ao povo egípcio o cultivo dos cereais e o culto aos deuses. Outro irmão de Osíris, Seth, que governava o deserto, tinha tanta inveja dele que o resolveu matar. Um dia, durante uma recepção, exibiu um cofre de madeira de cedro, dizendo que o oferecia a quem coubesse nele. Na verdade, a aparente brincadeira era uma armadilha: o cofre fora mandado fazer com as exactas medidas de Osíris. Quando o rei se deitou, Seth fechou a tampa e deitou-o ao Nilo, afogando-o. Ísis, inconsolável, partiu à procura do caixão, encontrando-o fora do Egipto, na cidade de Biblos, no actual Líbano (a terra dos cedros). A rainha teve que usar todos os seus encantos e estratagemas para convencer o soberano local a permitir que o seu amor pudesse ser repatriado para o Egipto. Mas Seth encontrou-o e, furioso, esquartejou o cadáver em 14 pedaços, que espalhou pelo país. De novo Ísis foi à procura do marido, juntou todos os pedaços, e conseguiu, por artes mágicas, que ressuscitasse. O renascido teve com ela relações sexuais e foi definitivamente reinar no mundo inferior, onde se encontram as sementes da vida. Ísis deu assim à luz um filho, Hórus, que se manteve escondido até ter idade para enfrentar Seth e arrebatar-lhe o trono do Egipto. Assim, a primeira ressurreição mística da história é a de Osíris e não a de Jesus. O culto de Ísis e Osíris transcendeu a religião egípcia. Ele foi recuperado por Plutarco, para os gregos, e passou aos romanos, atravessando todo o Império e chegando mesmo à Península Ibérica. Ainda em 394 d.C., o cônsul Nicómaco Flaviano ordenou que se realizassem festas nacionais em homenagem a Ísis. Só a partir do imperador cristão Teodósio foram encerrados os templos pagãos. O culto, contudo, ainda sobreviveria nas margens do Nilo até meados do século VI, uma longevidade absolutamente notável.


ALEXANDRIA
A Biblioteca 

O Templo de Philae é contemporâneo de Alexandria, a obra maior da linhagem dos faraós gregos que dirigiram o país do Nilo ao longo de 14 gerações. Os sucessores ocidentais de Alexandre Magno viraram a nova cidade para o mar, deram-lhe o mais mítico dos faróis e fizeram dela o maior centro de cultura da antiguidade. Fizeram-no na condição de faraós e ao modo dos faraós.

O melhor exemplo de como os ptolomeus - e mais tarde os romanos - absorveram a cultura e os deuses do Egipto encontra-se nas catacumbas de Kom el Shuqafa. A primeira câmara mortuária mostra Anúbis, o deus cão, vestido de legionário romano, pesando a alma do corpo que se encontra no sarcófago. À entrada, uma Górgona romana combina-se com uma serpente egípcia. Juntas, defendem o túmulo. Noutras câmaras, os defuntos têm rostos gregos ou romanos. Mas vestem-se como o faziam os ptolomeus: à egípcia.

Para ganhar o reino celeste de Osíris, o defunto repetia uma ladainha que já antes Moisés adaptara para os hebreus:

Não cometi a iniquidade contra os homens
Não maltratei os animais...
Não blasfemei...
Não envenenei...
Não matei...


Mais do que capital de um rio, Alexandria foi, durante alguns séculos, a cidade das cidades deste mar. Atraía gente de todas as paragens. E, por causa da sua biblioteca, transformou-se num centro de conhecimento sem par. Clímaco, poeta grego que dirigiu a biblioteca, decidiu proceder a um registo do acervo. O catálogo da biblioteca estendia-se, então, por 120 longos rolos...

Recentemente, as autoridades egípcias, com apoio internacional, decidiram ressuscitar o mito. Mas onde a primeira biblioteca se afirmou como centro de conhecimento da Antiguidade, a segunda fica-se pela excelência de uma arquitectura de tonalidades nórdicas. Claro que há quem leia e quem estude. Mas a qualidade das instalações esconde um país onde a produção de livros em árabe se encontra em crise. E onde o seu único Prémio Nobel, Naghib Mafouz, tem uma obra proibida. Nessa biblioteca, só a desarrumação de algumas das suas estantes não mente.


CIRENE
O Santuário de Apolo

Outro director da mítica biblioteca, Erastótenes, era geógrafo. Ele estimou, com espantosa aproximação, o diâmetro do planeta Terra. Fê-lo a partir de um cálculo sobre a distância entre Alexandria e a sua cidade natal, Cirene, que fica uns 800 quilómetros para ocidente, já na actual Líbia. Para a extrapolação, este "mago das ciências" usou a diferença entre as sombras do Sol à mesma hora nas duas cidades... Se vos contamos este episódio, é porque a viagem deve prosseguir para a Cirenaica, a montanha verde da Líbia, que foi colonizada pelos habitantes da ilha grega de Tera, actual Santorini. Nessa diáspora foi, uma vez mais, a água que determinou a decisão: anos e anos de seca na ilha conduziram os autóctones à busca de outras paragens. Antes preveniram- se. Consultaram a pitonisa de Delfos, que lhes recomendou que se fixassem onde encontrassem uma fonte de água pura.

Os terianos navegaram para sul e ocidente. Quando avistaram a Cirenaica, o contraste com a planura semidesértica deve ter sido extasiante. As ruínas de Apolonia, esguias, espreguiçam-se ao longo de dois quilómetros, acompanhando a linha da costa. É difícil conceber melhor lugar para fundar uma cidade. Mas a verdade é que em Apolonia ficaram apenas alguns. A maioria subiu a montanha em busca da fonte recomendada pelo oráculo. Não podiam ter feito melhor... Os terianos eram todos do sexo masculino. Mas foram aceites pelas populações locais.

Uma história de mil anos iria ser escrita com homens de Tera, mulheres líbias e meninos e meninas do Norte de África. O templo dedicado a Zeus ilustra a mistura. Os cirenaicos sentaram o seu deus no exacto lugar onde antes as populações locais adoravam o principal deus do Norte de África: Amon, o Deus Sol. Instalar a casa do novo deus no lugar do antigo obedece, de resto, à convicção entranhada de que há lugares mágicos mais propícios do que outros à vontade dos deuses. A atitude dos terianos não é novidade. A História regista, vezes sem conta, procedimentos similares. Deuses no lugar de deuses; igrejas no lugar de templos; mesquitas erguidas sobre pilares romanos ou cristãos e vice-versa. O Mediterrâneo serve-se em camadas sobrepostas.

No caso desta residência de Verão do deus grego, o tempo cansou-se. Zeus tem por companhia vacas, carneiros e cabras monteses, que gente é o que por ali não abunda. Os cultíssimos animais têm, aliás, a cidade por conta. Por isso, quem queira conhecer a Grécia antiga sem pressão do turismo, é a Cirene que se deve dirigir.

A jóia da cidade é uma plataforma artificial situada a meia encosta, com uma extraordinária vista para o mar. O espaço é marcado pela omnipresença de Apolo. Os romanos acabariam por profanar a sua natureza estritamente religiosa. O que marca a ruptura é a introdução de termas para uso público. A fonte deixou de ser um exclusivo dos sacerdotes... A mudança ilustra como, subtilmente, a cidade grega cede à cidade romana. A diferença é de filosofia. Para os primeiros, a Polis é, acima de tudo, uma comunidade de cidadãos da qual "apenas" estão excluídos os escravos. Já para os romanos, a cidade é uma ordem, um agrupamento assente sobre "um consentimento jurídico comum", para usar uma definição cara a Cícero. Num caso, falamos de autogoverno; no outro, de instituições jurídicas e políticas e de escala imperial.

Seja como for, o que nasce morre, e Cirene não foi excepção. Caiu ainda antes de se ter esvaído o império. Longe dos olhares, longe até das vacas e dos carneiros, um fantástico depósito de estátuas tem um apreciável número de Proserpinas. As últimas décadas de Cirene devem ter sido terríveis, portanto. Os sobreviventes encomendavam imagens da única deusa que lhes poderia trazer boas notícias: Perséfone, ou Proserpina, a deusa das colheitas.

Perséfone, a rainha do mundo de baixo
Um pouco por todo o Mediterrâneo é possível encontrar estátuas e bustos de uma mulher sem rosto. Elas representam Perséfone, filha de Zeus e Deméter, a deusa que representa o ciclo de germinação da Natureza. Diz o mito que Hades, o senhor das profundezas, raptou um dia Perséfone, depois de a atrair com uma flor de perfume inebriante. A mãe, Deméter, vagueou dias e dias à sua procura, sem sucesso, definhando progressivamente. Para evitar a sua morte, Zeus acabou por intervir, negociando um sábio desfecho para o rapto: durante uma parte do ano, Perséfone voltaria à superfície. Nos restantes meses, ela manter-se-ia nas profundezas. A figura sem cara é exactamente a que reina sobre o mundo de baixo. O lindíssimo rosto coberto por um véu, que encontrámos num armazém de estátuas em Cirene, na Líbia, é precisamente a Perséfone que sobe à superfície. Ela já tem, contudo, um outro nome, Proserpina. Porque data da era romana. Este mito foi ainda retomado na literatura por Schiller e Goethe, e em óperas de Monteverdi e Lully.


LEPTIS MAGNA
A Roma africana

Esta viagem pode bem terminar na Líbia, um país de areia com dois maciços verdes - a Cirenaica e, a ocidente, a Tripolitânia. Poderia cair o pano em Leptis Magna, a mais gigantesca ruína que os nossos olhos viram. Leptis Magna foi Roma no Norte de África. Capital de império com imperadores nascidos em África. O seu segundo fórum tem proporções impressionantes. Pense na Praça do Comércio, em Lisboa, e fica com uma ideia aproximada... se, entretanto, decorar as suas arcadas com górgonas, não vá o diabo tecê-las. Em Leptis Magna perde-se bem um dia, se o sol for comedido. E sai-se de lá apenas com uma ideia do que ela deve ter sido antes do ocaso.

Percebe-se a importância das fontes de água pura, como elas são, além de garantia de sobrevivência, uma marca distintiva de civilização e prazer. Percebe-se a inteligência do urbanismo e do desenho, no modo como a plateia do teatro se vira para o mar, ou como um belíssimo mercado se encontra estrategicamente colocado entre um e outro. Percebe-se como o Mediterrâneo combina prazer e poder, deleite e triunfo.

Percebe-se, até, como tudo tem um fim. Como não há impérios que durem para sempre. Mas esta certeza é a que se vê perto de Sirt, a meio caminho entre Leptis Magna e Cirene. Aí colocou Mussolini o seu arco do triunfo. Ele tinha prometido aos italianos um império de mil anos que resgatasse as glórias de Roma. Mas o arco, erguido em 1937, jaz hoje, envolto por terra calcárica. Alguma erva aí cresce. Ela diz-nos que o tempo não volta para trás.

O olhar que petrifica
Hoje espalhadas pelas ruínas do fórum de Leptis Magna, as medusas de pedra rodearam as arcadas do recinto, protegendo-o. Diz o mito que a Medusa era uma das três górgonas, filhas de Focis e de sua irmã Ceto. As suas duas irmãs eram imortais. Mas a Medusa compensava a sua efemeridade com olhos flamejantes e um aspecto terrível. Tinha cabelos feitos de serpentes, grandes dentes, e asas. Quem a olhasse de frente seria, de resto, imediatamente convertido em pedra. Perseu surpreendeu-a de noite e cortou-lhe a cabeça, e fugiu rapidamente para escapar à fúria das irmãs. Perseguido, salvou-se por se ter conseguido tornar invisível. Acabaria por entregar a cabeça da Medusa à deusa Atena, que a colocaria no seu escudo. Este mito foi levado à letra por muitos soldados, que, como forma de protecção suplementar, pintavam faces de Medusa nos seus escudos.


The great artificial river

Esta crónica poderia ainda acabar num reservatório do grande rio artificial. Há seis em funcionamento. Voltamos à água, portanto. Khadafi tentou, nos anos 70, exportar populações para os oásis. O plano falhou. E o regime mudou as agulhas: se os homens não vão até às aguas subterrâneas, então que estas cheguem ao litoral. A água armazenada desde o Neolítico é bombeada nos oásis e em seguida transportada, através de condutas descomunais, para os reservatórios do litoral. Aí deveria servir prioritariamente a agricultura. Mas, na realidade, a maioria vai parar ao consumo doméstico das cidades costeiras, onde vive 95 por cento da população.

Há pouco escrevíamos que o tempo não volta para trás. Mas isso não é toda a verdade. Porque o passado se insinua no presente. O grande rio artificial, como quase tudo o mais na Líbia, é obra de imigrantes. Os da construção não têm papéis. Aguardam nas praças das cidades que algum líbio lhes ofereça trabalho nesse dia. Esperam horas e horas, dias e dias com as suas ferramentas. Vêm do Chade e do Sudão. Não são muito diferentes dos não cidadãos das cidades gregas e romanas. Como eles, trabalham por comida, não por salário. E o regime dispõe das suas vidas. Não é brilhante, pois não? Mas Khadafi agora passou para o lado dos "bons da fita". E, afinal, não faz nada de substancialmente diverso do que na Europa também se faz em matéria de imigração. Anda tudo a ver como imitar a Grécia antiga... 

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Histórias do Mediterrâneo I: Cidades do mar, cidades do encontro

Histórias do Mediterraneo II: O caminho das areias   

Histórias do Mediterraneo III: O mar dos milagres

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