Fugas - Viagens

Marinheiros-turistas à vela no Tejo

Por Mariana Mata, Ricardo Rezende (vídeo), Rui Gaudêncio (fotografia)

Fomos navegar num grande e novo veleiro para sentir o que é ser marinheiro-turista. A bordo do "Alex", sentimos a dedicação de quem passa as férias a aprender a velejar. E tivemos direito a belos postais ilustrados de Lisboa. 

Ainda nem chegámos perto da linha de água e já o Alexander von Humboldt II se vislumbra, entre outras embarcações, no Porto de Lisboa. Na Doca de Alcântara, dominada pelo branco dos edifícios e da maioria dos barcos de recreio, destacam-se logo, para além do verde-escuro do casco do grande veleiro, os três imponentes mastros de cor ocre que suportam os vaus e as velas que, não tarda muito, terão ordem para serem içadas. Ninguém acreditaria que este imponente navio, de 75 metros de comprimento, tem apenas uns meses. Foi baptizado em Setembro de 2011 no seu porto de abrigo, em Bremerhaven, e é a réplica modernizada de um centenário veleiro alemão.

A bordo está já a nova tripulação, cerca de metade das 79 pessoas que perfazem a lotação total da embarcação. Detalhe: estes novos marinheiros são turistas que optaram por umas férias a trabalhar no mar, independentemente da sua anterior experiência náutica. Aliás, no grupo, que abrange as mais variadas idades e proveniências, há quem venha até com o propósito de aprender a velejar. Dos mais experientes tripulantes até aos principiantes, todos serão igualmente responsáveis por levar o barco a bom porto, o que inclui todas as funções necessárias à sua manutenção, de noite e de dia, faça chuva ou sol. 

No fundo, todos têm de "assumir os quartos [mesmo] à noite", explica Marta Lobato, representante da Associação Portuguesa de Treino de Vela (Aporvela), a organização portuguesa responsável pela regata e pelo projecto Jovens e o Mar que, como resume a brincar, manda "jovens dos 15 aos 80 anos" para o mar. "Os quartos" é a expressão náutica que se traduz nos turnos de quatro horas em que as equipas assumem a navegação e manutenção do veleiro. O que também acontece nos programas de fim-de-semana de treino do mar, a bordo da caravela Vera Cruz.

Christoph Maertterer, um dos mais jovens desta tripulação, confessa-nos que o único barco em que pisou antes do Humboldt II foi um ferry. Um amigo repetente nestas viagens aliciou-o a vir viver como marinheiro durante uma semana. Para já, está "muito ansioso e bastante contente", quer com a experiência, quer com o bom tempo que parece querer apadrinhar a viagem. E não se preocupa com o trabalho ou a falta de experiência: "Somos principiantes, fazemos o que os nossos companheiros nos dizem. E assim vamos aprender imenso sobre vela". Stefanie Fabian, a também jovem berlinense que o acompanha, já não é novata, embora só tenha velejado barcos muito mais pequenos. Agora sente-se preparada "para se juntar à equipa e ter a experiência num grande veleiro".

Nós também fazemos parte da tripulação - mas, admita-se, mais num domínio do faz-de-conta - e apenas ao longo do Tejo e um pouco mais além. Um aperitivo do trajecto que leva o veleiro até à Corunha, uma das viagens de promoção das Tall Ship Races, a megaregata internacional de grandes veleiros, já com cerca de 50 barcos inscritos e que inclui várias etapas em Espanha, França, Irlanda e Portugal - em Julho, chega a Lisboa. 


Marido a bordo

Somos convidados a embarcar mas primeiro, temos que ser identificados. A segurança não se descura, mesmo tratando-se do maior e mais avançado veleiro do género. Daí os pequenos grupos pintalgados pelo laranja dos coletes salva-vidas, que se estendem da proa à popa. Enquanto se prepara a saída da doca, cruzamo-nos com algumas das equipas que desvendam segredos do Humboldt II - até os mais básicos, mas essenciais, como a localização dos extintores ou o armário do convés repleto de equipamento de combate a incêndios.

Desta vez, todas as instruções são dadas em alemão - é esta a nacionalidade de toda a tripulação neste trajecto -, mas o mais comum é ouvirem-se várias línguas a bordo. Apesar de estas viagens serem apropriadas para pessoas de todas as idades, o programa foi especialmente pensado pela organização Sail Training Internacional para integrar os mais jovens nas tripulações, tendo como objectivo não só perpetuar a tradição da prática de vela mas também promover a partilha, o espírito de equipa e o sentido de responsabilidade, como resumem no seu site

Esta tripulação vem também à descoberta deste "Alex" novinho em folha, como carinhosamente chamam ao navio, uma perfeita réplica do seu antecessor, Alexander von Humboldt I. É uma versão mais moderna e ainda com muito por dominar, mesmo para a tripulação profissional, explicam-nos Monika e Lutz Schon, um casal de reformados quase profissionais destas andanças. Monika embarcou pela primeira vez numa destas viagens há 15 anos, no primeiro Alex. Há até detalhe romântico: foi onde conheceu o marido. Já participou até numa das Tall Ships Races, que diz serem um pouco mais stressantes porque, para além do barco estar lotado, o objectivo é "fazer tudo muito bem para conseguir ganhar a regata". Quem embarca, fá-lo pela diversão, dizem. E geralmente volta. "Adoramos o mar, o seu cheiro, o barco e o vento", explicam. E dão a sua visão da vida a bordo, que se repete em conversas com outros tripulantes: "No mar todos são iguais, independentemente do que fazem em terra. E o tempo concebe-se de outra maneira. Aqui ninguém usa relógio". Ainda assim, advertem, "é mesmo preciso adorar isto para embarcar na aventura".


Proibido desarrumar

Uma das portas abertas no convés leva-nos a uma escadaria interior de ferro, que descemos para descobrir outra porta que nos leva de imediato à sala de refeições. Pelos "passa-pratos", percebemos que uma pequena cozinha, dividida em duas, alimenta a sala. De um lado do corredor lava-se a loiça; do outro, no espaço minúsculo onde cabem miraculosamente inúmeros apetrechos culinários, chega-se a cozinhar para 80 pessoas por refeição. Ainda não são 10h e já se ouvem os panelões a mexer. A sala ampla e bem iluminada, decorada com pequenos quadros de motivos náuticos, pendurados entre vigias a deixar entrar o sol, tem mesas e bancos corridos que daqui a umas horas estarão ocupados por marinheiros famintos. 

Não se esperem é aposentos de luxo nesta aventura. Mas ainda assim, facilmente se vê que há o mínimo de conforto e alguns mimos, uma vez que todos os quartos incluem casa de banho com duche e são partilhados por duas a quatro pessoas, no máximo, sendo que alguns incluem cama de casal. O espaço é mínimo e agora percebemos bem porque nos explicaram que, havendo desleixo na arrumação, o caos rapidamente se instala. 

Voltamos ao céu azul e ao sol do convés, onde vemos os nós de marinheiro a prender as filas de cabos alinhados num dos aparelhos fixos que segura o complexo sistema de cabos e velas que, com a ajuda do vento, fazem o barco deslizar pela água. Lá no alto, já há tripulantes em subida, a fazer lembrar pequenas aranhas numa teia, agarrados pelo arnês de segurança a preparar a libertação das velas amainadas. Uma operação mais demorada do que o habitual, já que o barco esteve atracado durante três dias e todas as velas têm que estar bem seguras. No mar alto é tudo mais rápido, explica-nos um dos tripulantes enquanto se prepara para subir.

De queixo no ar, entre o fascínio de observar os movimentos de quem se pendura nos mastros, aterramos repentinamente: acabamos de tropeçar naquilo que percebemos ser o sistema de atracagem - fortes e grossas correntes enroladas num mecanismo que leva as âncoras a prender veleiros deste tamanho ao fundo de rios e mares.

Depois da proa, percorremos o convés e subimos à popa, onde fica o leme e a cabina do comandante, ladeado pelos dois botes salva-vidas com motor. Acima reparamos nas potentes lanternas que trarão luz ao convés ao anoitecer. Presos ao chão, os respiradouros de ferro curvos fazem a ventilação da parte inferior do barco.


Postal ambulante de Lisboa

No altifalante, a voz do comandante, seguida da sirene estridente, anuncia a partida. Quase sem darmos conta, o veleiro desliza pelas águas do Tejo e vemos a doca e a paisagemindustrial do Porto de Lisboa a ganhar distância, ao mesmo tempo que a vista mais bonita da cidade se revela. Viramos a estibordo e damos a curva que nos coloca no rumo certo, em direcção ao mar.

Sente-se novo burburinho e já há velas à solta e equipas organizadas no convés central para puxar os cabos que as vão içar e levar ao lugar. Um espectáculo de coordenação e trabalho de equipa que deixa até ver o comandante Reimer Peters, numa das suas poucas aparições nesta viagem, a coordenar os mais experientes do barco no processo de partida que chama, obrigatoriamente, toda a tripulação ao convés.

Assim que se libertam as velas, o convés ganha nova vida. Todos os bancos escondem o propósito de arrumar o material que sobra quando o barco está totalmente livre para navegar. No chão, há grossos cabos por todo o lado que têm que ser devidamente enrolados e arrumados. Da proa vem novamente o grito, repetido cá em baixo pelas equipas: "Todos ao convés!!" É Peter Dreyer, o carismático chefe de manobras, também conhecido por "Lancelot" pela sua atitude de cavaleiro navegante. A sua potente voz serve para dar as instruções necessárias para se içarem as velas e amarrarem convenientemente os cabos. Na maré de boa disposição que o caracteriza, diz-nos que a sua vida "não é a do mar". Em terra, comanda outro tipo de transportes. Apesar de integrar a equipa profissional, está ali de férias "tal como todos os outros", sorri.

Lá em baixo, em fila, estão os marinheiros-turistas alinhados junto ao cabo que será puxado até que a vela se erga. Tudo coordenado e organizado ao pormenor com a ajuda da cantilena "hol,weghol,weg" ("caça, folga", em português), um segura-larga que faz com que todos os esforços se conjuguem para içar as velas principais. Primeiro de um lado, depois do outro.

No meio desta azáfama apercebemo-nos que este pode ser o melhor miradouro de Lisboa. Enquanto no convés se trabalha para aproveitar o vento e colocar o barco em andamento, passam vários dos monumentos emblemáticos da capital portuguesaem pano de fundo. A Igreja de Santa Engrácia, o Panteão Nacional. Ao lado, o Mosteiro de São Vicente de Fora. Mais abaixo, o Cais das Colunas a convidar à entrada em Lisboa, mesmo em frente ao Terreiro do Paço. Lá no alto, numa das outras colinas, está o Castelo de São Jorge, quase escondido entre o arvoredo e, de lado, uma das torres da Sé Catedral de Lisboa.

Quando todas as velas estão içadas e se enfunam ao vento, já passamos por baixo da Ponte 25 de Abril, cuja sombra gigantesca nos apanha de surpresa, logo seguida do barulho ensurdecedor dos carros e comboios que por ela passam. E o Cristo-Rei? Lá está, ao longe.

O postal ambulante é interrompido por um desejado grito: pausa para o almoço. Descemos à sala iluminada pela luz natural da grande clarabóia central onde já está a equipa responsável por servir e levantar os pratos, que todos os dias rodará com uma das outras - e, coerentemente, apreciamos um saboroso prato de peixe.

Depois subimos ao convés e ao sítio mais recatado da popa, onde o silêncio e a calma do rio nos convidam à contemplação da paisagem que desliza por nós em câmara lenta: na margem, o Padrão dos Descobrimentos e a Torre de Belém assumem novos contornos e beleza desta perspectiva. Percebe-se que aqui também há um tempo e espaço próprio para o descanso do marinheiro que, até de cabelos ao vento, pode apreciar o melhor da vida. Enquanto isso, aparece o isolado Farol do Bugio em destaque, como que a avisar-nos que esta é a hora de saltar borda fora. E é quando gostaríamos de sentir os cabelos ao vento que reparamos que esse grande combustível desapareceu. Já não corre uma brisa sequer. E assim sendo tudo pára. Nós e o veleiro. Mas não é preciso fazer uma tempestade num copo de água: quem segue para a Corunha tem todo o tempo do mundo e não há qualquer razão para colocar os motores a funcionar.

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