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Crocodilos, freiras, poetas e índios. A história de Lisboa ao descer uma rua

Por Alexandra Prado Coelho

Chamava-se Rua Formosa. Hoje chama-se Rua do Século. Numa das sete rotas da Lisbon Week, o historiador Sarmento de Matos revela os segredos que nela se escondem.

{Lisbon WeeK: As sete rotas da semana de Lisboa}

 
Dinossauros, um crocodilo vindo de Chelas, os salões vazios do marquês, valas comuns usadas depois do terramoto de 1755, um convento de freiras, um poeta a morrer, máscaras de índios de tribos já extintas, um tatu empalhado, uma lanterna mágica para projectar imagens em movimento, uma biblioteca sem livros, uma biblioteca cheia de livros antigos. E tudo isto sem sair de uma rua de Lisboa - ou quase.

Quando os organizadores da Lisbon Week - o programa que inclui várias rotas diferentes pela capital entre os dias 22 e 28 - pediram ao historiador de Lisboa José Sarmento de Matos uma sugestão de rota, ele pensou imediatamente na Rua do Século, muito perto da Rua Eduardo Coelho, onde nasceu. 

Gostava de lhe ter chamado Rota da Rua Formosa, porque era este o nome que ela tinha antigamente, mas ninguém a reconheceria hoje. A Rota da História ficou, por isso, como sendo a da Rua do Século e é aí, na solene Academia das Ciências, que nos encontramos para começar o passeio. 

Sarmento de Matos abre uma porta e à nossa frente surge a impressionante biblioteca da Academia. "Há aqui coisas fantásticas, raríssimas, únicas, como o Livro das Armadas de Vasco da Gama", diz o historiador. As preciosidades estão guardadas nas estantes com vidro, até ao tecto. O edifício começou por ser um convento da Ordem Terceira de São Francisco. "Na altura, os franciscanos tinham um grande peso cultural. D. Frei Manuel do Cenáculo era uma espécie de ministro da Cultura do Marquês de Pombal, e os dois conventos franciscanos dos observantes foram os únicos imediatamente construídos a seguir ao terramoto", conta Sarmento de Matos.

Aqui, neste edifício da Rua da Academia das Ciências - onde viriam mais tarde a funcionar as Faculdades de Letras e Ciências - funcionava no tempo dos franciscanos "a escola do padre Mayne e as escolas de árabe". O convento era, aliás, juntamente com centros em Sevilha e Itália, "uma das três grandes escolas europeias de língua árabe". Até à extinção dos conventos, em 1834, o edifício foi dos franciscanos, e depois disso, a Academia, que tinha sido fundada em 1779, tendo como primeiro presidente o duque de Lafões, mudou-se para as instalações. 

Mas antes disso haveria de acontecer o terramoto que destruiu grande parte da cidade. E é esse episódio que nos leva a outra história, que iremos descobrir lá fora, quando chegarmos ao claustro. Aí, obras recentes permitiram abrir as sepulturas dos frades que se encontravam no chão. A surpresa, conta agora o professor Miguel Telles Antunes, director do Museu Maynense da Academia, foi que em vez de se encontrar um corpo em cada uma, começou a aparecer uma quantidade enorme de ossos misturados com cinzas, pedaços de carvão e objectos vários. 

Sabia-se que o terramoto tinha apanhado os padres no meio de uma missa e que morreram "o celebrante, o acólito e 19 mulheres". Mas nada justificava a quantidade de corpos e a confusão em que se encontravam. Só podia haver uma explicação: com a dificuldade em encontrar sítios para enterrar todos os mortos depois da tragédia, terá sido dada ordem para abrir os túmulos dos franciscanos e deitar para lá os restos mortais e tudo o mais que viesse atrás. 

Os túmulos têm agora um vidro por cima para que se possa ver como foram encontrados, e ajudarão, diz Alexandre Correia, bolseiro a trabalhar no museu, a conhecer melhor o que se passou na capital depois do sismo, porque muitos restos apresentam marcas de grande violência, indicando que foram mortos com armas brancas ou a tiro. 

Descemos agora a uma pequena sala junto à porta da rua para descobrirmos parte - uma ínfima parte, diz-nos Alexandre Correia - da extraordinária colecção da Academia das Ciências. Já tínhamos, à saída da biblioteca, vislumbrado algumas peças guardadas em vitrinas, entre as quais, conta-nos Telles Antunes, objectos da última expedição de James Cook ao Havai que chegaram à Europa apesar de o explorador inglês ter morrido lá. 

Na sala de baixo há mais, e é Alexandre Correia quem faz a visita (a exposição está aberta ao público e periodicamente muda para permitir mostrar outras peças). Há modelos anatómicos franceses do século XIX, e um em marfim do século XVII, um pedaço de crânio de uma mulher que terá sido vítima de um sacrifício humano (período neolítico), máscaras indígenas trazidas por Alexandre Rodrigues Ferreira das suas expedições ao Brasil no tempo de D. Maria I. "Muitas destas tribos estão hoje extintas e nós somos a única instituição no mundo inteiro que tem provas da sua existência", afirma Alexandre Correia. 

Dessas expedições vieram também animais empalhados, como um pequeno tatu e um papagaio amarelo que pertencia a um par, mas que, na altura das invasões francesas, foi levado para França, sendo depois devolvido apenas um dos animais já nos finais do século XIX. E assim o casal de papagaios ficou até hoje separado. 

Um museu à antiga

Mas se a Academia das Ciências tem mil e uma histórias para contar - e só não as conta mostrando a colecção toda num museu maior porque diz não ter de momento condições nem apoios para isso - no andar de cima do mesmo edifício guarda-se outra parte fundamental da história de Lisboa. Subimos ao Museu Geológico, um museu à antiga, um museu dos museus, como diz o seu director, Miguel Magalhães Ramalho, com as suas longas salas com vitrinas cheias de objectos.

É aqui que encontramos os dinossauros e o crocodilo de Chelas. "A nossa colecção de arqueologia é a segunda melhor do país", diz o director, lamentando que tantos ignorem a existência do museu. Todos estes vestígios da história mais antiga são de Portugal. Muitos, como o crocodilo, vieram da zona de Xabregas, Marvila, Chelas. "Havia muita gente que tinha casas de veraneio nessa área, e, nos inícios do século XX, como é uma zona de areias, puseram os terrenos à exploração de areias e barros para a construção civil", explica Magalhães Ramalho. 

Os funcionários dos serviços geológicos (o museu, criado em 1857, pertence ao Laboratório Nacional de Energia e Geologia, LNEG) faziam frequentemente a ronda desses areeiros e pediam aos trabalhadores para guardarem peças que parecessem interessantes. E assim chegaram até nós os vestígios do que foi Lisboa quando por aí andavam dinossauros e crocodilos. 

Sarmento de Matos aproxima-se da janela que dá para o Liceu Passos Manuel. "A antiga cerca deste convento [dos franciscanos, onde nos encontramos] pegava ao fundo com a do convento dos paulistas." Ao nosso lado está a Igreja das Mercês, que também faz parte da rota da Lisbon Week. Vamos agora para lá, para o historiador nos apontar a diferença entre "a exuberância" da parte de cima em contraste com a parte de baixo do edifício, o que mostra bem o que sobreviveu ao terramoto e o que foi reconstruído.

Seguimos caminho. Vamos ainda ao Convento dos Cardaes, "construído de uma assentada no século XVII e que não sofreu alterações". Valeu-lhe o facto de ser um convento de freiras, da ordem das carmelitas descalças. "Quando as ordens religiosas foram extintas, os conventos de frades foram imediatamente esvaziados. De um dia para o outro eram milhares de frades a andar pelas ruas, a pedir esmola. As freiras não. Os conventos ficaram intactos até morrer a última." No caso dos Cardaes, mais tarde "uma série de senhoras da nobreza criou uma associação de caridade que tomou conta do convento e o transformou num asilo para cegas". A associação ainda hoje funciona, recebendo crianças. 

O nome de Cardaes faz novamente Sarmento de Matos lamentar as designações que se perderam. "A rua onde nasci chama-se agora Eduardo Coelho, mas chamava-se dos Cardais, porque toda esta zona eram cardos. Era a Rua dos Cardais a Jesus, porque ia deste convento até ao convento de Jesus. Não é um nome bonito?"

Menos sorte que os Cardaes teve o Palácio Pombal - em frente ao chafariz se continuarmos a descer a Rua do Século. Nos seus tempos áureos, o Marquês de Pombal, que aqui nasceu a 13 de Maio de 1699, mandou construir o chafariz e desviou as águas do aqueduto para que passassem pela sua casa. Subimos a grande escadaria de pedra que leva ao interior do palácio, hoje propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, que o cedeu à associação cultural Carpe Diem. No interior resistem ainda os extraordinários trabalhos de estuque nos tectos, feitos pelo italiano Giovanni Grossi, e algumas das pinturas das paredes, mas há buracos em muitos sítios e, imaginamos que a decadência do edifício, com o seu enorme jardim transformado num matagal, teria certamente chocado o marquês. No meio de tudo, um pequeno oratório, muito alto, com varandas por onde se podia espreitar para o altar em baixo. 

Falta-nos ainda passar pela Igreja de Santa Catarina, antigo convento dos Eremitas de São Paulo da Serra de Ossa, onde vamos ver uma belíssima biblioteca, muito tempo ocupada pelo Exército mas agora vazia. E, por fim, pelo Palácio do Correio Velho, hoje sede da leiloeira com o mesmo nome. É um edifício único em Lisboa, afirma Sarmento de Matos. "Não tem nada a ver com a arquitectura portuguesa que se fazia, e faz lembrar muitos palacetes que existem em Roma. É muito italiano." 

E, embora grandioso, foi pensado para o ser muito mais. O projecto original previa a construção de um outro corpo. Ficou inacabado. A escada que subimos deveria encontrar-se com outra, criando uma entrada de grande imponência. Nunca chegou a acontecer. O edifício pertenceu primeiro ao monteiro-mor do reino e serviu depois como sede dos Correios - daí o nome porque hoje é conhecido de Correio Velho. 

Voltamos à rua e, antes de nos despedirmos, Sarmento de Matos aponta uma casa amarela na Travessa André Valente. Foi ali que o poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage morreu, em 1805. "Vou contar-lhe uma história", diz. Bocage estava já no final da vida, muito doente com um aneurisma, apesar de ter apenas 40 anos. No seu quarto naquela casa, desesperava sem dinheiro para comer. Valeram-lhe alguns amigos, entre os quais um que era conhecido por José Pedro das Luminárias, proprietário de um botequim no Rossio que, às vezes, gostava de enfeitar com luminárias. Era ele quem vinha visitar Bocage e recolhia os poemas que este fazia para tentar vender nas ruas e, com o dinheiro, trazer comida ao poeta. 

O corpo de Bocage chegou a estar na Igreja das Mercês. Tal como o do Marquês de Pombal, foi mais tarde transferido para a Igreja da Memória. "Esta igreja", afirma Sarmento de Matos, "foi fundada pela família do Pombal, eram chamados os Carvalhos da Rua Formosa." Isto não são só edifícios, conclui. "Os edifícios têm gente lá dentro e é isso que os torna interessantes." E é assim que se faz a história numa rua de Lisboa - ou pouco mais.

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