Fugas - Viagens

  • O casal Wheeler, que fundou a LP em 1972
    O casal Wheeler, que fundou a LP em 1972 DR
  • O casal Wheeler, no Taj Mahal, durante a sua viagem pela Índia (uma foto do livro
    O casal Wheeler, no Taj Mahal, durante a sua viagem pela Índia (uma foto do livro "The Lonely Planet Story") DR
  • A LP passou por completo para a BBC em 2011
    A LP passou por completo para a BBC em 2011 Rui Farinha
  • De um só livro, a LP, em 40 anos, passou a estar presente nas mais diversas plataformas com milhares de produtos
    De um só livro, a LP, em 40 anos, passou a estar presente nas mais diversas plataformas com milhares de produtos Rui Farinha
  • A LP já vendeu mais de 100 milhões de livros
    A LP já vendeu mais de 100 milhões de livros DR

O «planeta solitário» na palma das mãos

Por Andreia Marques Pereira

Foi há 40 anos que Tony e Maureen Wheeler fizeram a viagem que iria mudar as suas vidas (e as nossas). Partiram de Londres, atravessaram a Ásia e chegaram à Austrália. Aí, escreveram um livro e fundaram a Lonely Planet, que já vendeu mais de cem milhões de livros e agora desbrava o mundo digital. Sempre para nos levar ao “coração” dos lugares deste planeta solitário.

Foi uma confusão auditiva que deu origem ao nome: o “this lovely planet”, cantado por Joe Cocker na canção Space Captain, trocado por  “this lonely planet”. E, mesmo desfeito o equívoco musical, foi essa versão que prevaleceu. Lonely Planet. “Soa bem e este é um planeta solitário, até agora não encontrámos outros planetas com vida”. Quem o diz é Tony Wheeler, o britânico trota-mundos-editor-visionário que ajudou este planeta solitário a mitigar a solidão de algumas das suas partes. Para o bem e para o mal.

Foi há 40 anos que, com a mulher, Maureen, fundou a Lonely Planet (LP), que desde então se confunde com biografia de ambos. Mesmo que o cordão umbilical tenha sido oficialmente cortado em 2011, quando o casal vendeu os 25% que ainda lhe restava da editora à BBC Worldwide (que já havia comprado os restantes 75% e, entretanto, em Março de 2013, vendeu a LP a uma empresa americana). “Chegou o tempo para uma mudança e não ia ser uma dinastia familiar, não íamos passá-la aos nossos filhos.” Além do mais, a criança cresceu e exige outros tipos de atenção — afinal, longe vão os tempos em que a LP era uma “apenas” uma editora de guias de viagem em papel: agora é um conglomerado multimédia em que os guias são servidos em várias plataformas, para além do papel.

“Esta mudança para o mundo digital é algo em que sinto não estar na vanguarda”, explica Wheeler à Fugas, por email. E essa é uma grande parte do caminho futuro da LP, como explica Tom Hall, director de conteúdo editorial digital. A experiência Lonely Planet agora “chega em vários formatos: online, telemóvel, leitores de ebooks e ligação às redes sociais e email”. Não importa, contudo, quais são os meios, porque o objectivo de hoje da LP é o mesmo de sempre: “Fazer guias incríveis que levem os viajantes ao coração de um lugar”, resume Tom Hall.


Tony, o fanático

Porque viajar é preciso e, claro, tudo isto começou com uma viagem. Antes das milhares de viagens da LP, antes das centenas de livros editados e cem milhões impressos, antes dos 250 ebooks disponíveis, dos 10 milhões de downloads das suas aplicações, dos 186 milhões de visitas ao site, houve a viagem inicial.

E antes dessa houve a história de amor: Tony e Maureen conhecem-se num banco de jardim em Regent’s Park, um ano depois casam-se e a lua-de-mel planeada é coisa “simples” — atravessar a Europa e a Ásia de carro para terminar na Austrália. Meses depois, terminada a odisseia, o casal dá por si a escrever a experiência. “Porque tanta gente me fazia perguntas a que pensei poder responder. Porque não havia nada que respondesse a essas perguntas. Porque era uma oportunidade de negócio”, conta Tony Wheeler.

O resultado foi Across Asia on the Cheap, com 1500 exemplares vendidos durante a primeira semana. Para Tony, foi a percepção de que queria fazer das viagens um modo de vida. “Provavelmente deveria tê-lo percebido muito mais cedo, mas aconteceu nessa viagem pela Ásia, em 1972.” Tinha nascido a Lonely Planet, em Melbourne.

O resto, agora é história. Mas houve momentos-chave nessa história, sublinha Tony Wheeler. Logo em 1975, a edição de South-East Asia on a Shoestring, que foi “o primeiro livro ‘planeado’”; em 1981, o guia da Índia, “um livro grande que vendeu mais cópias e a um preço mais alto” do que qualquer outra coisa que a LP tinha feito antes; e, em 1985, o guia da China, a primeira incursão “numa nova grande região do mundo”. Entretanto, em 1984, a editora abriu os escritórios nos Estados Unidos, no que foi o “primeiro passo para tornar a LP numa operação global”. A chegada à Europa foi no início da década de 1990, numa altura em que “a companhia cresceu muito rapidamente” e “parecia que tudo o que fazia funcionava”. Em 1994 deu os primeiros passos na Internet.

Ao longo desses tempos, foi-se forjando uma filosofia ou um estilo que conferia aos guias LP uma identidade vincada que os separava dos outros. A principal diferença, na opinião de Tony Wheeler, foi o facto de se aventurarem em “locais ‘estranhos’, locais que as outras editoras não estavam a cobrir”. A forma como abordavam esses locais também era distinta e para tal valiam-se “da muita experiência, dos muitos bons escritores-investigadores e da capacidade de pesquisar as coisas muito minuciosamente”. “E, modestamente”, conclui, “creio que parte da diferença era que eu estava sempre envolvido em tudo, era, de alguma forma, fanático. Viajar era o mais importante”.

O caminho digital

Claro que em 40 anos viajar mudou. O mundo mudou. “Destinos em todo o mundo que outrora estavam fechados a viajantes, desde a antiga União Soviética a grandes porções da América Latina e África, que antes eram pouco visitadas, tornaram-se locais populares”, assinala Tom Hall. O modo como viajamos também se alterou.

“As companhias low-cost tornaram as deslocações curtas fáceis e baratas, o que significa que os viajantes podem fazer mais deslocações curtas. Ao mesmo tempo, destinos como a Austrália, que antes seriam a viagem de uma vida, são agora locais onde as pessoas vão para umas curtas férias de Verão. E cresceu toda uma indústria à volta das viagens de aventura — pequenas operadoras turísticas viajam para locais que antes eram acessíveis apenas a backpackers intrépidos”, descreve.

Tony Wheeler tem uma visão similar. Desde a sua viagem “inaugural” não só a “mecânica das viagens” se alterou “dramaticamente”, como os próprios destinos se transfiguraram. A China, “uma grande porção do mundo”, abriu-se; mas outros locais “fecharam-se, incluindo muitos dos locais visitados”: “Não há muita gente a ir ao Irão, Afeganistão ou Paquistão por estes dias.” De qualquer forma, continua, outras “grandes viagens são possíveis”.

Ele continua em viagem. A última que fez foi ao Cambodja, revela, “a um local arqueológico que ainda não está no radar turístico, Banteay Chhmar”, e para o ano prepara-se para ir à Colômbia, “fazer a caminhada para a Ciudad Perdida”. Dos países que ainda não visitou — e já visitou “uns 155”, sem qualquer corrida para completar listas, salvaguarda — o Iémen está no topo. Assume que prefere locais “estranhos, esquisitos, menos visitados”, por isso não se vê a escrever mais guias turísticos. “A maioria dos sítios sobre os quais gostaria de escrever não fazem sentido em guias: não há gente suficiente a visitá-los para fazer sentido do ponto de vista económico.” No entanto, e apesar de já não estar envolvido oficialmente com a LP, continua a contribuir para livros e para a revista Lonely Planet Traveller, por exemplo; e a escrever os seus próprios livros.

A LP, entretanto, acompanhando as mudanças do mundo, ultrapassou o papel e instalou-se no mundo digital — não confortavelmente, porque o objectivo é a expansão. Por enquanto, o site, as aplicações móveis, os produtos digitais e a sua comunidade de viajantes contribuem para cumprir os desígnios da companhia, que não se alteraram com a entrada da BBC. O que a LP quer é “ajudar o viajante com informação fiável entregue no formato que queira e ajudar os viajantes a relacionar-se entre eles e com companhias que os podem ajudar”, resume Tom Hall.

E a verdade é que se os livros continuam a ser “de importância fundamental”, cada vez mais viajantes estão a “utilizar recursos digitais, desde o planeamento à viagem em si”. Por isso, “os canais digitais são de grande importância” e há “planos ambiciosos” para o online nos próximos anos, de forma complementar o enorme arquivo de conteúdos disponibilizado, o Thorn Tree (“quadro” de mensagens com 1,1 milhões de utilizadores), a presença no Twitter e Facebook — quase um milhão de fãs e seguidores que têm acesso “a notícias actualizadas, inspiração e conselhos”.

Esta ênfase no espaço digital vai alterar a forma de trabalhar “no campo”. Os escritores LP vão ter de responder cada vez mais às necessidades destes produtos, o que significa mais resenhas de locais a visitar, porque deixarão de estar limitados ao espaço dos livros, informação sobre mais destinos, maior foco em instrumentos de planeamento (como itinerários) e na produção multimédia (imagens e vídeo) para levar os viajantes bem ao centro de tudo.

Afinal, como assinala Tony Wheeler, “não há nada pior do que estar a viajar de ‘A a C’ e descobrir que se perdeu algo deveras interessante em ‘B’”. A LP, e os guias de viagem, devem cobrir todos esses interstícios e aprofundar o que estamos a visitar, as histórias por detrás, como se relacionam com o mundo em volta. Sempre com a opção de a qualquer momento “poder abandonar o guia” e até descobrir que mesmo em locais como Veneza se pode estar em território quase desconhecido, vazio de turistas — “basta afastarmo-nos o suficiente da Praça de São Marcos”.

Actualmente, a LP está “num ponto interessante na sua história”, declara Tom Hall, “uma vez que está a acontecer uma verdadeira mudança na maneira como os viajantes consomem e utilizam o conteúdo para planear a sua viagem e interagir uns com os outros”. Pode ser uma encruzilhada, mas Tom Hall não tem dúvidas: “A essência do que fazemos — recomendar as melhores experiências no mundo — permanece a mesma.” O desafio, analisa, é ser uma “voz relevante” quando as viagens se tornam uma paixão mais global e interligada.

Aí, pode ir-se às raízes da LP. Foi a paixão pelas viagens que levou Tony e Maureen a desbravar este planeta solitário e com eles levaram multidões — que já há muito deixaram de ser apenas dos backpackers originais. “Espero que às vezes tenhamos empurrado as pessoas um pouco mais longe, lhes tenhamos dado inspiração para ir a sítios que nunca haviam pensado visitar”, confessa Tony Wheeler. Continua a ser assim. Nas palavras de Tom Hall: “A única coisa que um viajante precisa é da vontade de viajar, nós guiamo-lo a partir daí.”

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