Fugas - Viagens

  • Feng, há poucos dias: com a sua nova bicicleta e o
    Feng, há poucos dias: com a sua nova bicicleta e o "cabaz" de produtos lusos que lhe foi enviado DR
  • Sagres
    Sagres DR
  • Sagres
    Sagres DR
  • Lagos
    Lagos DR
  • Cabo da Roca
    Cabo da Roca DR
  • Lisboa
    Lisboa DR
  • DR
  • Em Sines
    Em Sines DR
  • DR
  • Na China
    Na China DR
  • Na China, a Montanha de Neve de Baimang
    Na China, a Montanha de Neve de Baimang DR
  • Na China, Kawagebo
    Na China, Kawagebo DR
  • Na China, Ran Wuhu
    Na China, Ran Wuhu DR
  • Na China, Ran Wuhu
    Na China, Ran Wuhu DR
  • Tibete, chegada ao Palácio de Potala
    Tibete, chegada ao Palácio de Potala DR
  • DR
  • Rússia, Moscovo, Praça Vermelha
    Rússia, Moscovo, Praça Vermelha DR
  • Rússia, chegada a São Petersburgo
    Rússia, chegada a São Petersburgo DR
  • Estónia
    Estónia DR
  • Alemanha, Berlim
    Alemanha, Berlim DR
  • Na Alemanha
    Na Alemanha DR
  • Paris, Eiffel e um
    Paris, Eiffel e um "milagre do sol" DR
  • A caminho do nevoeiro espanhol
    A caminho do nevoeiro espanhol DR
  • Em Espanha, Tolosa: Pasta-bicicleta
    Em Espanha, Tolosa: Pasta-bicicleta DR
  • "Eu sou o vento" - escreve Feng DR
  • "Viagem para o azul", legenda Feng DR

Não devolveram a bicicleta ao chinês mas enviaram-lhe uma nova e devolveram-lhe o sonho

Por Mara Gonçalves

Eric Feng pedalou pelo seu sonho: unir a China a Portugal de bicicleta, em nome de dois estimados navegadores e da ecologia.

Milhares de quilómetros depois, feito quase cumprido, roubaram-lhe a bicicleta em Sines. No Facebook ainda se gritou “Devolvam a bicicleta ao chinês”. Nada. Mas, há dias, um sorridente Feng recebeu na sua China nova pedaleira, enviada de Portugal. “Um testemunho de amizade”, diz  


Foi um daqueles momentos fatídicos. Faltavam poucos quilómetros para Eric Feng terminar a sua viagem, que o levou, sempre a pedalar, da China a Portugal. Feng quis unir a memória de dois navegadores, cruzando países em prol das energias sustentáveis. Por isso, desde Abril, percorria a Eurásia. Subiu a terras tibetanas, atravessou a Rússia e os países do Báltico, apaixonou-se pela Alemanha, detestou a França, rodopiou por Espanha, chegou, por fim, a Portugal. E, em terras de Vasco da Gama, leia-se Sines, a duas pedalas da meta, roubaram-lhe a companheira leal de quase 15 mil km. Roubaram-lhe a bicicleta e este poderia ter sido o fim, quase inglório, quase anedótico, da aventura.

Mas o fado de Portugal haveria de marcar toda a odisseia não só com o pior mas também com o melhor. Amigos portugueses emprestaram-lhe uma bicicleta e Feng cumpriu o seu destino. Em Outubro, pisava o Cabo da Roca, tornando o seu “primeiro sonho realidade”. Haveria de voltar para a China sem bicicleta para guardar memórias, tornando o final da história um pouco menos feliz. Mas o mundo é como a roda de uma bicicleta…


De como Zheng He e o Infante Dom Henrique se tornaram partida e meta

Natural da mesma cidade no Sul da China, Eric Feng sempre foi um grande fã de Zheng He,  “navegador pioneiro do mundo oriental” que desbravou os mares do sueste asiático há seis séculos. Em 2009, o guia turístico descobriu um outro navegador que, quase pela mesma altura, inaugurava as descobertas do outro lado do globo: o português Infante D. Henrique. “Foi o fundador do sistema de navegação ocidental e percursor da escola náutica europeia”. É ele que no-lo lembra, em conversa com a Fugas entre Portugal e China. Com uma paixão crescente pelos dois desbravadores de mares, Feng decidiu que a melhor forma de homenageá-los seria uni-los também numa odisseia, transformando-os em ponto de partida e de chegada. E assim criou um caminho entre a sua cidade, Kunming, e o Cabo da Roca.

No entanto, se Zheng He e o Infante ligaram o mundo pelo mar, Feng decidiu fazê-lo por terra, de bicicleta, numa demanda em prol, também, das energias sustentáveis. “600 anos depois, o mundo está unido economicamente e por isso temos os mesmos problemas, como o aumento da poluição e o desenvolvimento demasiado rápido”, conta-nos. Mais que fazer cicloturismo, Feng, de 29 anos, pretendia apelar à proteção ambiental. Por isso, pedalou. “Penso que a bicicleta é um bom meio para promover as energias sustentáveis, porque sou eu que produzo a energia que me faz movimentar e não crio qualquer poluição”.


De como dos planos se passou à odisseia

Depois de três anos a juntar dinheiro e a treinar, fez-se à estrada no Dia Mundial da Terra (22 de Abril), atravessando dez países em 188 dias. Ainda não tinha cruzado a primeira fronteira quando pensou em desistir: no Tibete e em Xinjiang teve de pedalar por estradas sem uma única povoação por perto. Eram “só carros a ultrapassarem-me a alta velocidade, muito frio e vento”. Nestas áreas montanhosas, onde o alcatrão contorna turbinas eólicas, “todos os dias tinha de pedalar contra o vento”.

Além das condições atmosféricas adversas, foi também nestas regiões que encontrou mais lixo ao longo da estrada. “Apesar de não viver lá ninguém, como são estradas principais, passam muitos condutores que deitam garrafas de água para fora da janela, sacos de papel, sacos de plástico”, critica. Só voltou a encontrar tamanha poluição na capital francesa, que, aliás, detestou. “Fiquei em Paris cinco dias e foi uma experiência terrível, havia lixo em todo o lado”. “São tão românticos mas não têm regras e podem fazer o que quiserem!”, defende o viajante. O contraponto absoluto? A vizinha Alemanha, que, sublinhe-se, foi o país que mais gostou de conhecer. Não só têm estradas “muito boas para os ciclistas”, como têm “muitas regras e a maioria das pessoas segue as regras, ninguém pode fugir”.

Ao longo de seis meses foi conhecendo as culturas e os costumes de cada país, registando as mudanças na paisagem e recolhendo informação, fotografias e vídeos sobre a poluição e a utilização das energias renováveis em cada região. Pelo caminho, 15 mil quilómetros pedalados e muitas amizades feitas. “No último dia em que estive na Rússia, um senhor passou por mim de carro, parou, e começou a conversar comigo em russo. Eu não percebia nada, mas convidou-me a ir a casa dele e conhecer o filho, que falava muito bem inglês. Conversámos a noite toda, ofereceram-me bebidas, jantar e no final convidaram-me para passar a noite na casa deles”, conta. “Atravessei nove países europeus e conheci muitas pessoas locais, são muito simpáticas. Agora continuamos a manter contacto”.


Da Sines do roubo à Sines de que Feng gosta. E de uma nova bicicleta

E assim foi Feng atravessando parte da China, a Rússia, Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, Alemanha, França e Espanha. Em Portugal, Lagos e Sagres. Até chegar a Sines, fatídica Sines.

Na última noite de estada na terra onde nasceu outo senhor dos mares, Vasco da Gama, roubaram-lhe a bicicleta. “Deixei-a na garagem do hostel onde fiquei e no dia seguinte descobri que tinha desaparecido”. A queixa na polícia só originou largas horas à espera e um documento, que ainda hoje, diz, guarda como “recordação”.

Ainda assim, apesar do incidente, Feng não guarda rancor da alentejana Sines. Pelo contrário, elege-a como a sua cidade preferida. “É uma típica vila portuguesa, com casas e vistas bonitas e um peixe fantástico”, destaca.

No entanto, a tal bicicleta, tatuada com 15 mil km de caminhos e muitos autocolantes chineses, nunca mais apareceu. Nem mesmo depois de um grupo de portugueses se juntar no Facebook para gritar “Devolvam a bicicleta ao chinês”, até com certo estrondo mediático.

Como o grito não surtiu efeito, a mesma empresa portuguesa que teve a iniciativa de fundar o grupo (a Pepper - Brand Taste) decidiu ofereceu-lhe uma bicicleta novinha em folha (feita pela portuguesa Órbita). Chegou há poucos dias a Kunming, às mãos de Feng, juntamente com muitos produtos portugueses – entre fotografias de Sines, kit Festival Músicas do Mundo enviado pela autarquia sineense, chocolates, compotas, conservas e, entre mais mercês, até um galo de Barcelos que um português emigrante na Holanda obrigou a mãe entregar para contribuir para a iniciativa.


Do adeus e da amizade aos sonhos de futuro

Sem o velocípede que o trazia desde Kunming, Feng viu-se obrigado a ir de autocarro para Lisboa. “Mas sou tão sortudo porque conheci muitos ciclistas em Almada e estes amigos guiaram-me até ao ponto mais ocidental da Europa continental”. “Quando chegou a minha casa, contou-me o sucedido e fiquei a saber que o objetivo dele era chegar ao Cabo da Roca”, conta Hernani Cardoso, o português que o acolheu em Almada através da Warmshowers, uma rede para cicloturistas semelhante ao Couchsurfing.

“Como faço parte de um grupo de cicloturistas de Almada, conseguimos disponibilizar-lhe uma bicicleta e os que tiveram disponibilidade foram acompanhá-lo até Sintra, Cabo da Roca, Guincho e Cascais”. “Foi uma alegria para nós tomarmos parte da festa que o Eric fez, com bandeiras da China e de Portugal”, afirma Hernani Cardoso, que ainda este ano parte numa viagem semelhante (Pelo Mundo Fora).

“O dia em que cheguei ao Cabo da Roca foi muito excitante porque cheguei ao destino do projecto. Foi como um sonho. Foi muito entusiasmante, principalmente com tantos amigos ciclistas portugueses”, conta-nos Feng. “Foi a prova de que, se consegui tornar o meu primeiro sonho realidade, então consigo tornar todos os meus sonhos realidade no futuro”, afiança.

Não há quem consiga duvidar. É a mesma certeza que se vê no sorriso com que guarda a sua nova bicicleta chegada de Portugal e mostra as recordações que acabou de receber. E é a mesma certeza que se sente no seu resumo sentido de toda esta odisseia: “A minha bicicleta tornou-se um testemunho de amizade entre Portugal e China”. 

__
Eric Feng: Lifecycles.me | Facebook

--%>