25 de Abril, domingo quente em Lisboa, entre a Estação do Rossio e o Teatro Nacional Dona Maria II. O desfile do Dia da Liberdade acaba de passar, deixando um rasto de festa e contestação. Chega uma bicicleta com um atrelado. É estacionada a um cantinho. Começam a surgir peças, madeiras. Subitamente, erguem-se um completo piano e uma pianista sorridente. Surge a música no meio do povo. Uns param, outros aplaudem, outros deixam até umas moedinhas; todos de olhos arregalados e sorriso de surpresa. No meio da actuação, alguém deixa um cravo vermelho sobre este piano viajante que decidiu, por mero acaso, parar no coração da cidade e no mais libertador dos dias, para dar música à imaginação.
É um momento no tempo, um dos muitos que Guillemette Dufouleur - ou Lou, pianista, escritora, actriz (não em vão, especialista em teatro em movimento) - e Christophe Clavet - ou Chris, fotógrafo e desenhador - têm vindo a semear pela Europa durante os últimos 15 meses na sua Pianotrip, um projecto de pianoviagem a dois que já passou por uma dezena de países, feita com a ajuda de uma bicicleta solar que transporta o instrumento, um real piano com uns 170 quilos. A ideia do casal francês consiste em "cruzar a realidade europeia" e na "acção espontânea de colocar um piano exactamente onde ele não seria esperado, tocando de forma efémera para as pessoas presentes", sendo que cada momento é registado em fotografia (e vídeo), a viagem vai sendo relatada na net e, no final, haverá um documentário, "um inventário aleatório do mundo que nos rodeia, feito de encontros e conexões".
Para tocar, qualquer cenário ou paisagem servem. O piano chega, é montado e Lou começa a tocar para quem quer que passe. Ouve-se Bach ou Nirvana, Rachmaninov ou Radiohead, Mozart ou Paolo Conte. Mas o mais importante é o momento de partilha e de diálogo, além da abertura súbita da imaginação. Porque "isto não é "apenas" uma viagem". "Na nossa geração, podemos ir onde queremos, quando queremos, a Europa agora não tem fronteiras, tem-las económicas, sim, mas não geográficas. Somos a primeira geração com esta oportunidade. Por isso, pomos o piano numa bicicleta e fazemo-lo viajar. Dá-nos algo mágico, que não controlamos, a disponibilidade para dar algo às pessoas e também receber, conhecer a realidade dos outros. Há algo de especial nisso", resume Lou.
É a vida, é o movimento, estamos no grande movimento de uma viagem, e usamo-lo para criar uma acção." E, sublinhe-se, levam o acaso a peito: quase não usam o telemóvel - nem para esta conversa foi fácil apanhá-los, como se não quisessem forçar estes encontros. "O mais importante do nosso projecto é concretizá-lo, não é falar sobre ele. Claro que aparecemos nos jornais, na televisão. Mas não planeamos momentos para os media. Não criamos esses momentos, são reais."
Para levar avante este continuum de instantes, contaram com o apoio de diversas instituições e empresas francesas e europeias e, depois dos últimos meses em Portugal, uma "experiência fantástica", a odisseia deve estar por esta altura a cumprir o Sul de Espanha. Deve. Porque o projecto segue o seu próprio tempo, na espuma dos dias.
Começaram a pedalar vindos de Annecy, Alpes franceses, em Setembro de 2010, deveriam ter terminado no Outono passado. Mas continuam. "Talvez" terminem no Outono, dizem. Porque é a real vivência da imaginação que os leva. E é a surpresa da imaginação que eles têm levado a cada um dos mais de 4000 km já percorridos. "Sejamos realistas, exijamos o impossível", sublinha Lou, "políticas à parte", citando um dos seus motes preferidos, assinado Che Guevara.
Missão: abrir o sonho
Lou e Chris não são músicos de rua strictu sensu nem turistas nem os normais viajantes. "Muitas vezes somos confundidos com músicos de rua. O que não tem problema. Por vezes, pomos até a caixinha para moedas. "És um pedinte ou uma estrela?". Oops... Ambos?" Uma dezena de países depois, confessam que só conhecem os sítios e paisagens por onde passam através das acções musicais e das pessoas com que se vão cruzando.
Nada de museus ou saídas para frequentar bares. "Um piano a viajar pela Europa numa bicicleta solar é mais importante do que uma boa viagem da Lou e do Chris, compreendes?" "É um trabalho"; "um projecto", "uma missão", vinca a pianista, neste momento sem piano à frente, porém ritmando cada ideia com os dedos como se tocasse teclas imaginárias. Isto anda tudo ligado com "viajarmos para o desconhecido e deixarmos a nossa imaginação vogar", "sentindo-nos vivos de curiosidade", escreverão mais tarde numa troca de mails. Isto é tudo para "abrir o sonho nas nossas realidades modernas". São actos musicais aparentemente efémeros, mas eternos na memória de quem os vivencia.
E já são muitos milhares a guardar estes quadros-memória: de França, o casal seguiu por Itália, Grécia, Bulgária, Roménia, Hungria, Eslováquia, Eslovénia, Áustria, deu um salto a Marrocos, passou levemente por Espanha e depois chegou a Portugal - onde, graças a uma residência artística em Monsanto, Idanha-a-Nova, pôde descansar de um ano de pedais e resguardar-se do Inverno europeu.
A Primavera trouxe-os a Lisboa, onde ficaram algumas semanas e foram criando os seus momentos, portais da criatividade: o piano assentou arraiais no Miradouro das Portas do Sol e houve criação poética no Terreiro do Paço, tocou à Torre de Belém e no jardim de São Pedro de Alcântara, passou pelo Rossio e pelo Post (em Benfica, espaço cultural e dedicado à bicicleta), criou natural poesia entre os peixes dos mares do Oceanário e real poesia no topo de um edifício do moderno bairro de Telheiras. "A ideia é sempre provar diferentes paisagens da Europa contemporânea, sentir as coisas de outra maneira, ser onde quer que seja, onde se possa experimentar qualquer perspectiva", diz Lou. E Telheiras foi bom exemplo disso: "Foi muito humano, as pessoas, pelo bairro urbano e moderno que é, não devem estar habituadas a momentos destes, por isso aproximaram-se instintivamente, compreenderam que o piano estava ali para eles."