Fugas - Viagens

  • Na Universidade de Coimbra, espreitando a Sala dos Capelos
    Na Universidade de Coimbra, espreitando a Sala dos Capelos Dato Daraselia
  • Biblioteca Joanina
    Biblioteca Joanina Dato Daraselia
  • Entrada da universidade
    Entrada da universidade Dato Daraselia
  • Na Universidade de Coimbra
    Na Universidade de Coimbra Dato Daraselia

Os encantos da Universidade de Coimbra na hora do Património da Humanidade

Por Alexandra Prado Coelho

Visita guiada à Universidade de Coimbra, recentemente classificada pela UNESCO como Património da Humanidade.

"Vamos ver se conseguimos espreitar aqui", propõe subitamente Catarina Freire, a nossa guia nesta visita à Universidade de Coimbra, quando passamos pela porta da Sala dos Capelos. Geralmente, os visitantes só conseguem ver este espaço, também conhecido por Sala Grande dos Actos, a partir das janelas no andar de cima, que permitem acompanhar o que se passa no interior mesmo quando está a decorrer uma defesa de tese ou outra cerimónia da vida académica.

Mas nós tivemos sorte. Uma cerimónia de doutoramento tinha terminado precisamente naquele instante e a candidata, já doutora, estava no meio da sala, segurando um ramo de flores, a posar para as fotografias e a receber os parabéns de colegas, amigos e família. Esgueiramo-nos discretamente para o magnífico interior. Esta foi a Sala Grande do Paço Real manuelino, onde se realizavam as importantes cerimónias da corte, próxima dos aposentos do rei e da rainha. "Foi a partir daqui, daquela que era considerada a mais importante sala da Ibéria, que os nossos primeiros reis governaram o país. Foi aqui que D. João Mestre de Avis foi aclamado", conta Catarina Freire.

Não será de estranhar, por isso, que um aluno que ali defenda a sua tese (a sala passou a ser usada para cerimónias académicas depois de a Universidade ter sido aqui instalada, a partir do século XVI, e recebe, nomeadamente, os doutoramentos honoris causa) se sinta pequeno perante a imponência do espaço, com a sua galeria de retratos régios, a cátedra, os bancos doutorais, a cadeira do reitor. "Os olhos do candidato devem ficar ao nível dos pés do júri", explica a nossa guia. "A cerimónia não é uma formalidade. Há reprovações." Não foi, aparentemente, o caso aqui, porque a candidata (de Farmácia, segundo indica a cor da faixa na parede) tem um ar satisfeito e sorridente.

Visitar a Universidade de Coimbra é passear por um espaço que acaba de ser considerado Património Mundial da Humanidade pela UNESCO. Mas a grande magia deste lugar tem sobretudo a ver com o facto de estar vivo - há aqui muita História, podemos estar na sala onde os antigos reis tomaram grandes decisões, mas ao mesmo tempo estamos num espaço que continua a ser vivido todos os dias, cruzamo-nos com os alunos que, esquecidos dos reis, pensam apenas que se calhar ainda não sabem bem determinada matéria, que deviam ter estudado mais para um exame ou então, pelo contrário, que se sentem confiantes de que em breve serão doutores.

No caso de Coimbra, o Património da Humanidade é material mas também imaterial e o lado imaterial é este: uma cultura de universidade feita de capas e batinas, de tradições, de serenatas, do som do aclarar a garganta (é o que se deve fazer numa serenata, nunca aplaudir), da vida nas repúblicas, de histórias que passam de geração em geração e que todos preservam aqui porque sabem que é isso que faz Coimbra - e quem nela vive e estuda - especial.

Talvez a aluna que vimos a formar-se tenha dado - como manda a tradição - três pontapés num azulejo escondido atrás de uma porta, para "afastar a raposa". Catarina tinha-nos mostrado a localização do azulejo com a raposa, célebre para todos os alunos que possam ter suores frios antes de um exame. As marcas dos pontapés dados para afastar a raposa, ou seja, o chumbo, são bem visíveis no pobre azulejo, onde está representada "a única raposa que existe na universidade", garante-nos a nossa guia.

Momentos antes, à saída da Capela de São Miguel, onde tínhamos estado a admirar o impressionante órgão do século XVIII que só pode ser tocado pelo organista Paulo Bernardino ou por quem ele autorizar, e o balcão para a família real mandado construir pelo Marquês de Pombal, encontráramos Ricardo, estudante de Antropologia, vestido a rigor, de capa e batina. Catarina pede-lhe um instante e aproveita a oportunidade para mostrar aos visitantes o que significa o traje académico de Coimbra, com origem nas vestes eclesiásticas e cuja utilização respeita regras muito rígidas. A capa, por exemplo, deverá tocar o chão, os rasgões que tem em baixo devem ser feitos com os dentes (um deles significa que o aluno tem namorada e se a relação terminar ele terá que coser o rasgão), e as insígnias bordadas têm diferentes significados.

O grupo de brasileiros vindos de Cantanhede, no estado do Maranhão, que está a fazer esta visita com Catarina Freire, e o director-adjunto da Biblioteca Geral da Universidade, António Eugénio Maia do Amaral, pede para tirar fotografias ao estudante trajado a rigor, antes de seguirmos caminho pela Via Latina, o pórtico no Norte do Pátio das Escolas onde, no passado, só se podia falar em latim. Mas essa é uma tradição definitivamente perdida, já que hoje na Via Latina se ouvem todas as línguas faladas pelos muitos turistas que visitam a Universidade.

Tínhamos começado a visita pela Porta Férrea, que dá acesso ao Pátio das Escolas, exactamente no mesmo local da antiga porta-forte da alcáçova mandada construir por Almançor depois da reconquista da cidade pelos muçulmanos, em 987. Entramos no Pátio das Escolas, deixando para trás os edifícios universitários construídos já durante o Estado Novo a partir de projecto do arquitecto Cottinelli Telmo, e que mudaram radicalmente o perfil, até então medieval, da chamada Alta de Coimbra - que, juntamente com a Universidade e a Rua da Sofia (construída no século XVI e onde se localizavam antigamente os Colégios Universitários), faz parte do conjunto classificado pela UNESCO.

Parceria com os morcegos

Começamos a visita por um dos seus momentos altos: a Biblioteca Joanina, mandada fazer no início do século XVIII por D. João V, e, lê-se num folheto, "reconhecida como a mais sumptuosa biblioteca universitária jamais concebida e obra-prima do barroco europeu". Havia pedidos para a construção de uma biblioteca que permitisse guardar os livros em condições desde o século XVI, conta Maia do Amaral. O projecto - "uma ideia do rei, mas paga pela Universidade" - avançou finalmente no século XVIII e foi construído com rapidez, integrando logo novos livros, porque o monarca queria que "o ensino se abrisse às novidades".

"Está construída quase como se fosse uma igreja, com o retrato do rei ao fundo, como se estivesse num altar. A tendência dos visitantes quando entram aqui é começar logo a falar baixinho", conta Maia do Amaral ao grupo de brasileiros. Catarina Freire acrescenta que o ouro que vemos na decoração veio do Brasil, de Minas Gerais, e que as madeiras são africanas, orientais e brasileiras.

Manter um local como este exige cuidados especiais e não podíamos sair daqui sem contar a história da colónia de morcegos que há séculos vive dentro da biblioteca, que ajuda a preservar, alimentando-se dos insectos que poderiam destruir os livros. "Existe uma parceria", diz Catarina. "Os funcionários trabalham de dia, os morcegos de noite. Estão totalmente adaptados a este ecossistema, e existem orifícios de saída que lhes permitem ir ao exterior beber água." A única preocupação é com as magníficas mesas de madeira, que têm que ser cobertas com lençóis de couro - a nossa guia ergue um no ar para nos mostrar - para as proteger da acidez dos dejectos dos morcegos.

Depois de um dos visitantes brasileiros perguntar se poderá existir na biblioteca uma edição do final do século XIX do Pantheon Maranhense, de António Henriques Leal, e Maia do Amaral se comprometer a procurar no final da visita entre o milhão e meio de livros do catálogo geral, seguimos por um corredor estreito que dá acesso a outra sala usada para exposições temporárias e actualmente ocupada pela mostra Do Sul ao Sol, que conta a história da relação dos portugueses com o Oriente.

E, dos livros e objectos que relatam esse encontro, passamos para o espaço menos nobre da prisão académica, com as suas celas individuais, e a colectiva, com as latrinas em lugar de destaque. Era aqui que se detinham estudantes, professores e funcionários, dado que a Universidade tinha o seu próprio sistema de justiça, que excluía apenas os crimes mais graves e que era garantido pelos archeiros. Estes deixaram de ser uma força policial mas não desapareceram - Catarina chama-nos a atenção quando um deles passa por nós no interior da capela - e continuam a exercer funções de guardas.

São também eles, como os estudantes de capa e batina que se cruzam com os turistas; como as solenes cerimónias de doutoramento; o maltratado azulejo da raposa; a torre que os estudantes baptizaram como A Cabra porque de manhã tocava 15 minutos seguidos; o púlpito na capela de onde o Padre António Vieira proferiu o último discurso antes de ser preso pela Inquisição; os balcões no alto das salas de aula para o reitor espreitar; as serenatas monumentais que não podem ser aplaudidas; as muitas histórias que os livros contam, ou a colónia de morcegos que voa pela Biblioteca Joanina no silêncio da noite - são, dizíamos, todos eles parte fundamental deste património vivo da Humanidade que é a Universidade de Coimbra.

--%>