Continuamos sentados no pátio da bomba. A Cedes já se juntou a nós, os três chás tornaram-se em seis e obviamente lá veio mais uma caneta para ela. No meio daquela estrada deserta, naquela recta monocromática onde não se deverá passar quase nada durante a maior parte das estações, nasceu então uma festa multicultural, improvisada e inesperada como são as melhores festanças de todas. Rimos muito, falámos sem perceber do que falávamos, dançámos músicas ciganas, usámos o Google Translate para trocar ideias e comemos frutos secos. Dançámos mais músicas ciganas, brincámos com o fogo e acendemos cigarros, tirámos fotografias e prometemos ser amigos para sempre.
A dada altura, algures entre mais um perfeito desentendimento, “eles” perguntam-“nos” por quantos países já tínhamos passado. Enumerámos as nossas listas, eu falei da Europa, de Marrocos, do Maláui, da Zâmbia, da Suazilândia, da Tailândia, do Camboja, do Laos, de Singapura e de outros sítios que vi antes de começar a escrever. Do lado de lá, do lado dos estagnados, um momento que eu senti morto. Do de lá, do lado que vejo, a minha suspeita da inveja, um talvez complexo de inferioridade fundido na vontade de bem receber.
Survivor’s guilt: a depressão consumada pelo único sobrevivente de um acidente rodoviário. “O remorso do rico”: a dor que me mastiga quando olho para outra pessoa e formalizo a sorte que tenho em viver a minha Vida, em oposição à sorte dele, meu irmão humano com tanto direito à felicidade como outro irmão qualquer. É estranho, mas de alguma maneira estes conceitos interligam-se e, ao viajar e conhecer, ao olhar e olhar para não parar de ver, por vezes sou absorvido pela acidez da impotência. Quem sou eu para ter sobrevivido à lotaria que antecedeu o meu nascimento? Que real direito tenho aos privilégios de conhecer o mundo? Por que raio posso enumerar os continentes que já pisei, os oceanos em que nadei e as montanhas que pensei escalar? Porque é que nasci com tanta fortuna, uma fortuna obscena, se a enquadrarmos numa escala global?
Pensar assim poderá parecer inútil. Tais apreciações poderão ser até hipócritas deambulações, dilemas de quem tem horário para se dar ao luxo das inquietudes existenciais, mas são-me de facto impressões incontroláveis e indissociáveis do confronto com a realidade. Acontece quando contraceno com a rapariga que trabalha arduamente, mas recebe o que por pouco lhe basta para comprar comida. Acontece quando conheço pessoas da minha idade que nunca viram o mar, ou o céu através da janelinha de um avião. Acontece quando o que a mim parece barato é a outros inacessível. Pode acontecer em qualquer lado, mesmo à porta da minha casa, em Lisboa ou no Ribatejo. Porém, em viagem ganhamos um estatuto especial: somos novidade, distracção e escape à rotina. Um ar fresco que entra nas vidas de quem, mesmo não estando à nossa espera, nos recebe com toda a alma. E esse pequeno poder, o poder de sermos nós mesmos num lugar diferente, traz uma grande responsabilidade.