Fugas - Viagens

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  • Manuel Roberto
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Macau: Faites vos jeux

Como é que se diz o mui portuense “estou p’ra minha vida” (ou um palavrão aceitável) em americano?

Portanto Veneza é quando um homem quiser — pensaram macaenses, americanos, o homem que sonha. E se vou a Veneza quero tudo aquilo a que tenho dinheiro — exigiram milhões de consumidores. Gondoleiro que canta O Sole Mio incluído. E já agora a Cartier e a Prada, as botas australianas Ugg (porque todas as actrizes de Hollywood as usam) e o Kentucky Fried Chicken (porque agora somos muito ricos e convém que tenhamos os problemas de obesidade dos países ricos).

Mas que digo? O Venetian é um entretém que não conta para nada. O centro comercial igual a Veneza, quero dizer. A gôndola é um entretém para casais recém-casados, e é a possibilidade que um miúdo de 12 anos tem de ver Veneza.

- Já foste a Veneza?

- Sim, a do Venetian.

Vero. E faz assim tanta diferença saber que aquilo é uma Veneza de fancaria?

Um entretém. O que interessa é o jogo. Macau faz 8,29 vezes as receitas de Las Vegas. Ou seja, Macau faz em quatro dias o que Las Vegas faz em 31. Um casino de Macau faz, por dia, 130 milhões de dólares. Um casino de Macau recebe por dia 80 mil pessoas. As receitas do jogo em 2013 foram de 45,2 biliões de dólares. O que interessa é a massa. Vai dar ao mesmo, mas são coisas diferentes. Joga-se por causa da massa e joga-se porque a vida é um jogo. Talvez não haja desafio maior do que fintar o destino, fazer-lhe xeque-mate de vez em quando. Os deuses, quando não estão do nosso lado, chamam a essa audácia descomedida hybris, e castigam-na. Pecado capital. Mas a Grécia Antiga e as suas tragédias pertencem a outro reportório, além de serem de outra geografia. Pode ser que entrem nesta se alguma vez se lembrarem de reproduzir o Parténon e fizerem casinos debaixo das colunas de mármore rosa. Não é (ainda) o caso. 

O Venetian, antes de mais. É, como todos os edifícios do Cotai, um complexo constituído por três partes: um hotel, um centro comercial e um casino. Os edifícios irrompem como plantas viçosas numa terra fértil. Há centenas de guindastes para onde quer que se olhe. (Já não via tantos guindastes desde a Expo 98.) Não são bem plantados, são mais implantados, os edifícios, as palmeiras, os canteiros irrepreensíveis.

A terra, ela mesma, aparece onde antes era nada. A frase é inexacta porque antes era ali água, água entre ilhas e o aeroporto. Agora há um aterro, um corredor largo que uniu Coloane e a Taipa. Daí o nome: Cotai,mix das duas ilhas. O aterro trouxe com ele o progresso e a construção, o desenvolvimento e a massa. Se o aterro fosse uma pessoa, seria a mais sôfrega que conheci. Assim, o aterro revela a intenção de pessoas, e continuam a ser as mais sôfregas que conheci. Pessoas que querem mais terra, e mais, e mais, e ali inventam o que se parece com um paraíso — para muitos.

Estou em frente ao Venetian e penso que sou uma das 14 mil pessoas a olhar pela janela e a ver o Venetian. Potencialmente uma das 14 mil pessoas. O meu hotel tem sete mil quartos, e se cada quarto tiver duas pessoas, estaremos 14 mil pessoas a olhar para os guindastes e as gôndolas. Potencialmente. Mas seremos poucos, entre os 14 mil, os que têm dois quatros no número do quarto. Um quatro, para um supersticioso, é um signo nefasto. Imaginem dois...

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