Fugas - Viagens

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  • Manuel Roberto
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Macau: Faites vos jeux

O meu quarto era o 3404 e é bem possível que tivesse sido recusado pelo seu número aziago. Como não sou supersticiosa achei o 3404 uma opção tranquila.   Convém dizer que não jogo, nunca joguei e acho que nunca jogarei (só não sou mais peremptório no “nunca jogarei” porque pode dar azar, nunca se sabe...). Nunca joguei no computador, nunca tive uma consola, não jogo no Facebook, nem quando me convidam para jogar Mahjong como se estivéssemos num filme do Wong Kar Wai. Se estivéssemos, eu jogaria. Mas, na realidade, sem os vestidos da Maggie Cheung e os cigarros do Tony Leung, não estou disponível. Só para amar.

Fui quase todas as noites ao casino, aos casinos, não jogar, ver jogar. Esclareço o plural de casinos: o Cotai deve ser entendido como um complexo de circulação fácil de bens e pessoas. Circula-se entre hotéis, shopping e casinos como se tudo fizesse parte do mesmo parque de diversões. (Tudo faz parte do mesmo parque de diversões.) No meu hotel, quando me dirigia ao pequeno-almoço, passava pela Gucci e pela Rolex, e um pouco mais à frente da sala de refeições, guardado por uns guardas de farda amarela, ficava o casino. Do meu hotel ao Venetian eram minutos a pé, do Sheraton ao Venetian eram minutos a pé, do Four Seasons ao Venetian eram minutos a pé. Tudo ligado por corredores internos, formigueiro onde nada é deixado ao acaso. Artificialidade absoluta. Mas uma artificialidade confortável, onde a música de fundo é Sinatra.

E tudo a funcionar non stop. Um casino é como Veneza: é quando um homem quiser.

Cada hotel tem o seu núcleo de lojas e casino. O Venetian é o Venetian pela sua excentridade. Talvez venha a ser destronado pelo Parisian. Com torre Eifell e tudo, bien sur, quando o Parisian abrir. Não há-de tardar muito, que time is money, pensam os americanos que põem processos por dá cá aquela palha e são sensíveis ao tema dos direitos de autor. Mas para já, O Sole Mio.

Até então, tudo o que eu sabia de jogo estava no filme de Jacques Demy A Baía dos Anjos. Depois daqueles dias em Macau, tudo o que me interessa no jogo está na cara das pessoas que jogam. É uma maneira de continuar dentro do filme do realizador francês; ou seja, na psicologia do jogador. Mas nos casinos do Cotai não há a Jeanne Moreau, com o cabelo de um louro branco e vestidos sumptuosos. Nem havia o glamour do rapaz que a segue, e dança com ela, e lhe empresta cem francos para jogar numa máquina deflippers, o Claude Mann.

No filme ele pergunta-lhe:

- Porque é que estamos aqui, juntos, neste quarto?

- Porque é que eu te arrasto como um cão de guarda? Porque me dás sorte. Como uma ferradura.

E neste momento ele parte-lhe a cara, que é o que acontece quando as pessoas estão descontroladas e se portam como idiotas desesperados. Não importa que da janela se visse o Mediterrâneo e o filme de passasse na Côte D’Azur. De que serve Nice?

Não há um excesso visível nos casinos do Cotai. Os jogadores têm cara de pedra, não se vislumbra inquietação. Não têm uma gestualidade exuberante, não beijam as fichas, são silenciosos. É raro ver um pequeno grupo à volta de uma mesa, a excitação sobre as suas cabeças, o som da alegria ou desapontamento. Nessa altura, sabemos que ali se passa qualquer coisa de atípico.

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