Como é que se diz O Sole Mio em mandarim (ou cantonês)? O gondoleiro veste calças pretas, camisa riscada, chapéu de palha e fita vermelha. Maneja o remo com destreza, desliza na água azul-piscina. Os passeantes abraçam-se como amantes de Veneza, sorriem, tiram fotografias. Têm uma felicidade atónita, o paraíso é mesmo ali. Talvez lhes falte o sol. O astro-sol, não o sole. Mio. Suo. O dia está ameno, com nuvens esparsas, de um branco algodão-doce. Um eterno dia de Primavera.
Talvez o céu seja o mais fictício dos céus, e o facto de as nuvens não nos acompanharem no caminho, não correrem (às vezes as nuvens correm), seja o mais perturbador daquele paraíso. Damos dois passos, três, olhamos para o céu. São duas da tarde, são dez da noite, o cenário mantém-se inalterado. O mesmo céu azul, com as suas nuvens esparsas, que devem ter sido escolhidas para fazer um bom contraste do branco com o azul. Se a intenção fosse a aproximação ao real, o céu seria idealmente limpo, sem a ameaça de nuvens, mesmo que brancas, mesmo que esparsas.
Ali, aquele paraíso, é a Veneza onde os gondoleiros cantam em mandarim (ou cantonês) o clássico que nos habituámos a ouvir por Pavarotti e pelos gondoleiros de braços vigorosos, tatuados, tisnados pelo sol de Veneza. E não é preciso saber como se diz O Sole Mio em mandarim (ou cantonês, não consegui deslaçar o enigma). Um chinês que vem do fim do mundo, um indiano que vem do umbigo do mundo, um oriental acompanha ciao com um sorriso (muito mais exótico do que Ni Hao) e balança o corpo de cá para lá na altura do O Sole Mio. Os gondoleiros são das Filipinas, da Malásia, de um país pobre, e projectam a voz como um pássaro virtuoso. Cantam a letra toda em mandarim (quem diz mandarim diz cantonês) e O Sole Mio no original. Alguns prolongam-se nos trinados para gáudio da malta que passa (e dos passeantes que pagaram não sei bem quanto para andar de gôndola; se as minhas conjecturas estiverem certas, pagaram mais 20% do que pagariam em Veneza, a vera, a sereníssima.)
Ora aí está uma coisa que não cabe nesta Veneza que venho descrevendo: o adjectivo sereníssima. O epíteto davera Veneza soa — não falso, mesmo num lugar onde tudo é falso — mas deslocado. Ou mesmo absurdo. Porque na Veneza do Venetian tudo é estridente, bling bling, cacófono. A discrição, o azul aristocrático, a rugosidade que vem com os anos e confere sapiência e distinção — nada disso cabe ali.
Deve ser igual na Veneza de Las Vegas. Pelas fotografias, parece. Mas a essa nunca fui.
Se eu fosse Veneza, a vera, a sereníssima, eu ia a Macau exigir direitos de autor. Um americano entenderia isto. Um americano é sensível ao tema dos direitos de autor. Um americano processa por dá cá aquela palha às dez da manhã e conhece a sentença às três da tarde. Assim também eu poria processos por dá cá aquela palha. E se fosse Veneza, acharia duvidoso que me copiassem o palácios dos Doges, a ponte Rialto, o serpenteado dos canais, o ambiente de um quadro de Canaletto.
Mas esperem! Um americano não entenderia isto! Porque um americano copiou isto mesmo para a sua América — ou seja, para Las Vegas. E são estes mesmos americanos que chegaram a Macau e reproduziram ali o que já tinham feito em Las Vegas. O Venetian. Pois, pois.