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Índia: Como se contorna a morte num país onde isso é uma oferenda aos deuses

O livro não é específico quanto à sua localização, e menos ainda preocupado com a verosimilhança das suas referências. Caramba, uma das personagens chega a usar o dracma como moeda corrente, quando o dracma é grego, e o título português, tal como, aliás, o francês (Asterix chez Rahàzade), mais depressa fazem alusão às mil e uma noites do que ao Mahabharata, o livro dos livros indianos. Ainda assim, é possível ler naquele que foi o quarto livro assinado exclusivamente por Uderzo, após a morte do seu co-autor Goscinny, um divertimento em torno dos equívocos que, para o autor, eram protegidos pela tentativa de relacionar as aventuras dos gauleses com "o universo mágico dos anos 1950 e do desenho animado".

O rio sagrado

O álbum, na sua língua original, é bastante mais complexo e, tal como a realidade da qual parte, onde ficção e realidade se misturam como se fossem uma só, convivem nos diálogos,escondidos versos das óperasFaust, de Gounod, O Castelo do Barba Azul, de Bartok, referências àOdisseia, de Homero, ou mesmo ao musical norte-americano Singing in the rain e até canções de Charles Trenet. E, na peripatética viagem pela selva, após o rapto de Assurancetourix (hoje, em português desmaiado, diz-se Cacofonix), o bardo indesejado na Gália mas esperado no Ganges, é a Rudyard Kipling, e ao seu Livro da Selva, que Uderzo se vai inspirar. Estão lá a serpente Kaa, o elefante Haati, o tigre Shere Khan e só não está o urso Baloo porque Ideafix, o cão, é bastante mais fiel e Obélix ficaria ofendido se fosse considerado uma criança.

Naturalmente As aventuras de Astérix são bastante mais solares do que a imagem que se possa ter da Índia. Mas guardam a relação especial que os indianos têm com o Ganges. Explica Kemseráh quando Astérix se espanta com "o aspecto bem seco do Ganges": "O Ganges é um rio sagrado. Apesar de estar seco, os indianos, para purificarem a alma e o corpo, continuam a fazer lá as suas abluções." Obélix achará que "estes indianos são um tanto ou quanto esquisitos", mas a verdade é que, na Índia, tudo se joga no Ganges.

Mais do que um rio, ele é, na verdade, o símbolo da Índia, da utopia da união dos diversos povos. Jawaharlal Nehru (1889-1964), o pai fundador da Índia moderna, cujas cinzas haveriam, como as de tantos outros, ser lançadas ao Ganges, descrevia "o rio da Índia" como o lugar onde se encontravam "as memórias ancestrais, as esperanças e os medos, os hinos de triunfo, as vitórias e as derrotas". Numa carta que foi depois reproduzida, em pedra, em Dehli, no Shantivan (o lugar da paz), lugar central do parque Raj Ghat, onde existe um samadhi (memorial), Nehru descreveu o Ganges "como o símbolo de uma cultura e de uma civilização secular, permanentemente em mudança, sempre corrente, mas sempre o mesmo Ganges", que lhe fazia lembrar, ao mesmo tempo, "os picos montanhosos dos Himalaias, cobertos de neve, e as ricas e vastas planícies onde a [sua] vida e trabalho foram forjados".

A história do Ganges, escreveu Nehru em The Discovery of India (1946), "da nascente até ao mar, de tempos antigos aos novos tempos, é a história da civilização indiana, da ascensão e queda dos impérios, de grandes e orgulhosas cidades, da aventura do Homem e da busca do intelecto que tanto ocupou os pensadores indianos, das virtudes e tesouros da vida mas também da sua recusa e negação, dos altos e baixos, do crescimento e da decadência, da vida e da morte".

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