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Índia: Como se contorna a morte num país onde isso é uma oferenda aos deuses

Descreveu Alberto Moravia em Uma Ideia da Índia (Tinta da China, 2008) que do rio "imóvel e espelhento sob o formigueiro febril da multidão surgirá, justamente, o sentido de uma morte em que a vida se imerge e se dissolve, do mesmo modo que os cadáveres que todos os dias são confiados à corrente, para que ela os transporte e os disperse no mar".

A morte, precisamente, que, para os indianos não é senão um ritual de passagem que, naturalmente, como no baptizado, passa pela água. Dizem os crentes em momento de oração do Gangashtakam, nos vários portões que dão para o rio na cidade de Varanasi, a cidade dos mortos: "Oh Mãe!... De colar que enfeita os mundos! Bandeiras elevadas aos céus! Peço que deixe este meu corpo nas tuas margens, bebendo a tua água, marulhando nas tuas ondas, lembrando o teu nome, oferecendo-te o meu olhar."

Percebemos melhor a angústia do rajá Estáláh, impotente perante os deuses nos quais confiava, mas ao mesmo tempo a aceitação plena da falta de chuva como um prova exigida por esses mesmos deuses quando lemos esta breve passagem num dos livros sagrados do Satapatha Brahmana: "Quando os homens e os deuses viviam em conjunto, os homens não paravam de pedir aos deuses tudo o que lhes faltava, dizendo: "Não temos isto. Dai-nos." Os deuses começaram a cansar-se destes pedidos e esvaneceram-se".

Para um ocidental, mesmo de países com profundas tradições religiosas, nada o prepara para o choque que é a presença da fé - e da devoção. De Amirtsar, no Norte, fronteira com o Paquistão, onde o Templo Dourado foi construído no lugar de um lago onde um paralítico voltou a andar porque vira um pássaro transformar-se numa garça, a Benares, onde se sente "o fulgor cego do Ganges", como escrevia Pier Paolo Pasolini, companheiro de viagem de Moravia em O Cheiro da Índia (90°, 2008), é na forma como os corpos se abandonam ao imaterial que se constrói a identidade do indiano. Diz a princesa antes de ser sacrificada aos homens e mulheres que gritam "viva a nossa princesa que vai morrer por nós": "Que o meu sacrifício faça com que o céu vos inunde finalmente com as suas riquezas! Caso contrário, precavei-vos contra as serpentes que vos enganam e se servem da vossa miséria para satisfazerem a sua cupidez". Duas páginas depois, menos de dez vinhetas passadas, "deu-se o milagre gaulês [que] desencadeou finalmente a monção. As colheitas estão salvas, as águas sagradas do Ganges voltaram a subir e todos os indianos estão felizes".

Imaginamos, ainda que o álbum não tenha som, que até aos gritos das gralhas, "esse breve arroto, insolente, idiota e descarnado" no qual Pier Paolo Pasolini via a imagem da própria Índia, "constante e desordenada", por momentos se acalmou e a Índia voltou a encontrar no Ganges a sua ordem.

Quando estamos num dos portões do Ganges, em Varanasi, por exemplo, e observamos os homens que se banham ao lado dos búfalos, ou vemos crianças subirem ao cimo de toros de madeira para observar as piras funerárias que ardem na margem, quando nos apertamos nas já apertadas estreitas ruas da cidade dos mortos, atropelados por um cortejo fúnebre que, apressado, carrega, aos tombos, um corpo coberto de flores, ou por uma procissão feita de rapazes em idade viril que sobem e descem até ao rio carregando pequenas bolsas de água que vão depositar aos pés das estátuas dos deuses, percebemos que esta relação com a fé, onde o sacrifício não é senão a oferenda evidente, é uma forma de construir uma presença, o mais material possível, e o mais perto possível desses mesmos deuses que testam, e forçam, a fé dos homens.

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