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Lisa começou a andar na Áustria e só parou na Península Ibérica

Por Rute Barbedo

3500 quilómetros, 156 dias, uma tenda, uma mochila e uma fiel cadela. Lisa Klimek, 20 anos, fez Viena-Salamanca a pé com cinco euros por dia e muitas perguntas sobre a vida. No final, uma boleia deixou-a no Alentejo. “Não parei tanto em nenhum outro lugar”, diz.

Quando olhamos para Lisa Klimek – bochechas rosadas, gémeos robustos e cabelos dourados pelo sol –, a pergunta é inevitável: por que razão uma miúda de 20 anos decide caminhar 3500 quilómetros? “Queria saber mais sobre a minha verdade do que sobre a verdade que os outros me dão.” Ponto. E de cada vez que nos responde, Lisa é assim: clarividente.

A 1 de Maio, esta “nature freak”, como se declara, deixou para trás os arredores de Viena rumo ao Sul. Partiu com a cadela de 11 anos, Jala, calçado confortável e uma mochila. Chegou a Salamanca cinco meses e dois dias depois, com as solas gastas e uma visão diferente do mundo. “Uma das melhores respostas que consegui foi que eu produzo a minha própria energia”, nota a jovem austríaca. As muitas noites de silêncio e céus estrelados contribuíram fatalmente para isso, mas também as acres tempestades, a sede e a exaustão. Em todo o caso, este cenário surgia mais confortável aos olhos de Lisa do que a Áustria que sempre a fez sentir-se alienada.

“Eu vivia entre campos de cultivo e a cidade [de Viena] e, desde pequena, saía de casa de bicicleta para explorar as imediações, observar a natureza ou simplesmente procurar crianças da minha idade”, recorda Lisa. A vontade de explorar cresceu e, um dia, ela chegou a casa e disparou à mãe: “Não sei bem para onde vou, mas vou.” Como o dinheiro era pouco, trabalhou nos meses precedentes e fixou nos cinco euros o limite dos gastos diários. Para se treinar fisicamente, fazia cerca de 15 quilómetros a pé, todos os dias.

Ao final de um mês de pés na terra, em território alemão, Lisa Klimek decidiu seguir o percurso sem mapas. “Fiquei sem saber muito bem para onde ir, mas depois comecei a interessar-me pelo método”, declara. Para além dos calos, os cinco meses pela Europa fizeram-se tanto de comida fria como de dormidas no colchão de campismo – com tenda ou sem ela –, em pedaços de jardim, rectângulos agrícolas, sofás emprestados e fardos de palha. Ainda assim, e acima de tudo, ficou-lhe a certeza de como é bom ter o céu como tecto. O pedido era sempre o mesmo: “um espaço para montar a tenda”. Em resposta, as mais distintas reacções. “O segredo era tentar. Se falhasse, tentava outra vez. Que mal podia acontecer?”

Os males humanos descansam incógnitos, mas não será despropositado mencionar algumas adversidades da caminhada, segundo a protagonista: “Estava a 1200 metros de altitude, em Gorges du Verdon, no Sul de França. Comecei a ver nuvens muito carregadas e o caminho era difícil, cheio de arbustos e rochas. Estranhamente, encontrei uma pessoa, e ela falou-me da tempestade que vinha a caminho e que tinha matado sete pessoas dois dias antes.” À noite, quando Lisa descansava na tenda, a tempestade chegou. “A terra tremia imenso” e a luz dos relâmpagos durava 20 ininterruptos segundos. “Estava fisicamente perto da morte, mas não havia nada a fazer senão respirar”, lembra Lisa, com notas de força e violência na descrição. Meia hora após os primeiros ventos, um carro aproximou-se. “Era a pessoa que me tinha avisado antes, proprietário do terreno onde eu estava acampada. Ele gritou, eu saí da tenda com a Jala ao colo e fomos para um contentor.” No dia seguinte, o sol brilhou.

Houve outras duas situações semelhantes, tal como distâncias de 40 quilómetros sob sol tórrido e sem água ou as crises musculares de Jala. Mas Lisa sempre acreditou que o caminho seria em frente.

Porquê andar?

“Andar é uma metáfora para tudo: queremos andar para frente, dar o primeiro passo, andar bem…”, reflecte a caminhante, explicando que este é o movimento mais fiel ao nosso ritmo, implicando corpo, emoções e mente. Não terão surgido sem intento os walkabouts da Austrália nem algumas tradições em tribos asiáticas e latino-americanas que decidem levar os seus problemas ao mundo deixando tudo e todos para trás. “Caminham até encontrarem uma resposta e não regressam antes”, pormenoriza Lisa, entrevendo no background nómada da Humanidade “algo que nos diz para continuarmos a andar”.

No caso da jovem austríaca, parece ter havido todo um treino de vida apontando para esta caminhada, desde a proximidade aos animais até à sua deficiência congénita: Lisa nasceu com um coração três vezes maior do que o normal. “Já tinha acampado diversas vezes: sei como fazer fogo em ambientes húmidos e construir um abrigo, conheço a Natureza, observo a minha cadela, sinto o meu corpo, sei ter a água como prioridade. Além disso, sou uma pessoa muito física e preciso de deitar toda a minha energia para fora. Depois, os acasos ditam o jogo”, enumera de uma assentada.

A última paragem pedestre foi Salamanca. De lá, o acaso de uma boleia conduziu-a à Herdade do Freixo do Meio, um projecto de produção biológica situado a poucos quilómetros de Montemor-o-Novo, onde acabou por ser voluntária durante dois meses.“Foi a minha primeira cama depois de muitas semanas. Além disso, estava bastante doente, pelo que foi uma oportunidade para parar e organizar a minha saúde”, conta. Até então, as paragens mais longas tinham sido de quatro dias mas, no Alentejo, a miúda do coração grande deixou-se ficar. “Mesmo não gostando de muitas coisas, sinto-me mais no sítio certo aqui [em Portugal]. E quero voltar.”

Lisa regressou a Viena a 23 de Dezembro, de comboio. Por estas alturas, andará a escrever a quem deixou pelo caminho, como indiciou antes de partir: “Acho que tenho de enviar uns 50 postais quando chegar... Com o dinheiro que poupei, há-de dar para fazer isso.”



Guia do caminhante

- Mochila confortável e um peso máximo de 15 kg
- Preparação física. Lisa Klimek caminhou 15 km todos os dias, durante duas semanas, antes de partir
- Testar o calçado antes da viagem
- Saber orientar-se pelo sol e com a ajuda do compasso magnético (feito de uma agulha e uma tigela com água)
- Aprender a ler mapas, tendo em conta os declives e cursos de água
- Saber fazer fogo em ambientes secos e húmidos
- Ter um kit de primeiros socorros
- Munir-se de contactos para emergências
- Saber construir um abrigo
- Utilizar um colchão isolante, um bom saco-cama e uma tenda de campismo resistente
- Ter linhas e agulhas, já que os remendos são inevitáveis
- Ter noções ou mesmo formação em auto-defesa
- Seguir um comportamento ecológico
- Saber como lidar com animais no seu habitat natural
- Confiar nos instintos para escapar ao perigo

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