Fazer escolhas
Há carnavais e carnavais e jamais se estabelecerá um consenso sobre a superioridade dos carnavais do Recife, de Salvador ou do Rio de Janeiro. Se a festa carioca é mais sensual e exuberante e a da Bahia mais negra e dionisíaca, os cinco dias de Carnaval pernambucano são sem dúvida mais democráticos e culturalmente heterodoxos. Em primeiro lugar, não há sambódromos como no Rio a cobrar bilhetes nem trios eléctricos como em Salvador que, para serem seguidos, exigem contrapartidas — nem que seja a compra de uma camisola. A menos que se queira um lugar num dos palanques por onde se seguem os corsos, que chegam a custar 60 euros, no Recife e em Olinda a festa é completamente livre. Pode-se seguir em frente com um bloco e fazer marcha-atrás com um maracatu, pode-se subir uma rua com uma orquestra de frevo e regressar com um grupo de afoxé sem gastar nada com isso.
O problema maior é fazer escolhas. Quem experimentou as festas de preparação dos blocos ou dos grupos de percussão no coração do Recife histórico ou nas calçadas setecentistas de Olinda sabe que, no aparente caos da festa, há um sem-número de detalhes que convém perceber. Cada bloco tem a sua própria personalidade cultural, política ou até social, organiza-se num “foco”, tem uma hora para a largada e segue uma rota mais ou menos estabelecida. Alguns, como o Manguebeat de Olinda, procuram homenagear a cultura urbana do Recife, uma mistura de rock agressivo com ritmos negros do Nordeste que deu a volta ao mundo com os discos de Chico Science, nos anos 1990; outros dedicam-se à crítica social, como o Enquanto Isso na Justiça. Outros, ainda, nascem e crescem sem narrativa e vivem da inspiração do momento e da capacidade de atraírem quem andar pelas suas rotas.
Este ano, a organização do Carnaval do Recife refere a existência de 63 “focos”. Uns são centralizados, outros descentralizados, alguns são comunitários e três serão dedicados às crianças. Mas sempre que se refere a esta pluralidade de lugares onde se congregam os grupos que, por vezes, chegam a arrastar pelas ruas da cidade milhares de seguidores, há que ter em consideração a existência de uma estrela maior nesta constelação: o tal Galo da Madrugada. Fundado em 1977 numa reunião patrocinada por um empresário, o Galo é hoje a figura do regime do Carnaval. Mas é-o mais pela quantidade de gente que arrasta ou pelas fotografias cénicas que proporciona do que por um acto de paixão genuína. Em Olinda há quem lhe faça frente, se não em mobilização, por certo em intensidade cultural.
Veja-se o caso do Homem da Meia-Noite. Esta figura é claramente inspirada na tradição portuguesa dos Zé Pereira. Em linguagem nortenha, o Homem é um gigantone. Ou um cabeçudo. Bem vestido (este ano levará as cores do Brasil, em homenagem à Copa do Mundo), com um dente de ouro a sublinhar a sua condição próspera, esta figura faz parte do Carnaval de Olinda desde 1932. Os registos avisam que quando o Homem sai à rua há uma espécie de delírio metafísico — difícil de explicar, como tudo o que diz respeito a estas festas. Com tanto sucesso, acabaria por se tornar obrigatório encontrar companhias apropriadas a semelhante personagem. Foi assim que nasceu a Mulher do Dia, um horário bem mais politicamente correcto.