Para trás fica a Praia do Calhau, em São Vicente. Em frente, a ilha que promete ter as praias mais bonitas e imaculadas de Cabo Verde. No caminho, e entre os salpicos de água salgada, encontram-se peixes-voadores e peixes-agulha. Na chegada, avistam-se ao largo da costa alguns braços a acenar. São na maioria europeus nos seus veleiros que ali fazem a última paragem antes de enfrentarem o Atlântico. Mais à frente, o TerryTres, um navio de carga que encalhou na praia da Francisca em Outubro de 2012 e ali ficou. Já bem perto de terra, e depois de flutuar e balançar alguns minutos, chega a altura de arregaçar os calções, pôr as mochilas ao alto e caminhar até terra.
Chegar a Santa Luzia tem tanto de cativante como de misterioso. A estátua que se encontra junto ao Portinho não deixa dúvidas: “Santa Luzia – Reserva Natural Integral”. As praias, de longa extensão, têm areia branca e fina. As águas cristalinas permitem ver o fundo do mar e os caranguejos fantasmas parecem teimar em dar as boas-vindas. Adquiriram este nome pela sua tonalidade, que, por ser tão idêntica à areia, os torna difíceis de distinguir. Mais para o interior, onde a vegetação é escassa, as lagartixas endémicas da ilha também parecem querer dar um ar da sua graça.
Com apenas 35 quilómetros quadrados, Santa Luzia é, desde 1990, património público e diz-se que os últimos dois habitantes, um casal, abandonaram a ilha em meados dos anos 1970. Na Topona, o ponto mais alto da ilha, a 397 metros, pode olhar-se em redor. A oito quilómetros avista-se o ilhéu Branco, mas, na verdade, parece que está ali mesmo, à distância de duas braçadas. O ilhéu Raso está a 17 quilómetros e ambos integram a mesma reserva que Santa Luzia.
Actualmente, a ilha está interdita à presença humana, salvo raras excepções. A organização não governamental Biosfera I é a única com autorização para actuar em Santa Luzia. Tommy Melo, co-fundador da associação, garante que a ilha necessita de uma restauração ao nível da fauna. Jailson e Kenny estão hoje na ilha. Todos os meses, durante um ano e meio, até Agosto de 2014, dois biólogos da associação passam 10 dias isolados. Têm como objectivo perceber como oscila a fauna da ilha, para poder entender o quadro geral do ecossistema nas ilhas e estudar os gatos e ratos que parecem terem-se fixado ali.
Trazidos pelas populações que outrora moraram na ilha, os gatos e os ratos começam a ser um problema para os que se preocupam em mantê-la intacta. O trabalho é feito pelos biólogos à noite, longe dos olhares indiscretos. Colocam diversas câmaras de visão nocturna com diferentes iscos para perceber quais são mais apetecíveis para os felinos e também diversas armadilhas para ratos. A intenção é estudar a população ao longo do ano. Portanto, os ratos não são mortos. São apanhados, marcados e libertados novamente. “É a recaptura que nos vai dar um índice da população. Fazemos ainda transectos de répteis nocturnos e diurnos e recolhemos fezes de gato de forma a saber daquilo que os gatos se alimentam ao longo de um ano”, explica Tommy Melo. “Queremos colocar Santa Luzia nos eixos em termos de espécies e vigilância.”
Apesar de muitas das espécies da ilha serem migratórias, a calhandra do ilhéu Raso e a cagarra de Cabo Verde são espécies endémicas que nidificam apenas no arquipélago e que a Biosfera I pretende translocar para Santa Luzia brevemente. Por isso, é também necessário fazer a identificação de toda a flora da ilha para saber se Santa Luzia tem o potencial alimentar necessário para receber as aves e sem predadores directos; se esse não for o caso, recorrer-se-á a transplantações.
Juntamente com as tartarugas marinhas, ambas as espécies de aves estão em vias de extinção, maioritariamente devido à predação humana. Santa Luzia parecia ser um paraíso para aqueles que capturavam animais ilegalmente. Um local sem fiscalização e longe de todos os olhares. No entanto, através da sensibilização junto das populações e dos pescadores, os resultados estão a tornar-se cada vez mais positivos para a preservação das espécies, garante Tommy Melo.
Presentemente, os turistas não são bem-vindos na ilha. No entanto, Tommy Melo garante que, quando Santa Luzia estiver preparada para os receber, será um passo a dar. O ecoturismo parece ser uma solução. Permitir aos turistas que visitem a ilha, mas sem que isso a prejudique, um turismo que não seja para as massas, que não provoque destruição de habitats ou poluição, que seja sustentável e ecológico.
“É possível mostrar o que é belo sem se destruir”, garante o biólogo. “A Biosfera I não quer fazer ecoturismo. A Biosfera I quer ser o fiscal e moderador do ecoturismo na ilha. Não queremos que o governo coloque nenhum fiscal a controlar, queremos mesmo ser nós, pois temos a certeza de que vamos fazer um bom trabalho. Queremos ensinar a empresas locais como praticar o turismo na ilha de forma correcta.”
Deixamos agora a praia de Palmo Tostão. A maioria dos veleiros já partiu e alguns são visíveis na linha do horizonte. Os peixes-agulha e os peixes-voadores continuam curiosos. Para trás fica Santa Luzia, a ilha deserta.
Os homens do mar
Os pescadores de Santa Luzia consideram o mar como um membro da família e vivem nas pequenas barracas que construíram no Portinho. Passam ali cerca de cinco dias por semana, mas não são considerados habitantes. Escolheram esta forma de vida porque o peixe ali “é melhor”, asseguram.
Naturais da ilha vizinha, São Vicente, vão a casa apenas dois dias por semana. Garantem que preferem Santa Luzia, pois é ali que têm o seu trabalho, a sua vida, o seu sustento. Estão hoje na ilha cerca de 30, mas normalmente chegam a ser 100. Há pescadores de todas as idades e os veteranos garantem que levam este modo de vida desde a adolescência.
Movidos pela força de vontade e pelo amor à profissão, partem todos os dias por volta das seis horas da madrugada, quando o sol começa a espreitar. Há sempre quem fique em terra para o caso de ser necessário. Por volta das 15h voltam. A força empurra o barco para terra e o peixe é amanhado ali mesmo. Após ser lavado na água salgada, é conservado de forma artesanal em arcas geladas que conseguem preservar o peixe até ao período máximo de uma semana, para depois ser levado para São Vicente e ser vendido à população. Dizem que a pesca naquela zona “já teve melhores dias” e que as grandes embarcações europeias prejudicam o negócio local.
Descobrir borboletas de mochila às costas
Peter Russell e John Tennent conheceram-se nos anos 1980 e o fascínio pelas borboletas trouxe-os a Cabo Verde. Com 73 e 62 anos, respectivamente, são ambos britânicos e estiveram dois meses no arquipélago. Santa Luzia foi uma das últimas paragens. Já viajaram um pouco por todo o mundo, sempre com o mesmo intuito: descobrir as borboletas, a sua taxonomia, biogeografia e distribuição. Um trabalho minucioso e que requer persistência. A máquina fotográfica e a garrafa de água parecem ser as maiores aliadas.
“Com menos de 30 espécies, as ilhas de Cabo Verde não são particularmente ricas em borboletas, como já esperávamos de um grupo de pequenas ilhas situadas a 700 quilómetros do continente. No entanto, podemos ver que houve confusão na identificação de algumas espécies registadas a partir do arquipélago nos últimos 100 anos”, confessa John. Garante ainda que recolheram “dados suficientes para interpretar e corrigir alguns dos registos anteriores”, tendo encontrado três espécies nunca antes registadas.
De mochila às costas, acampam na ilha e dedicam-se a tempo inteiro à razão que os trouxe a Santa Luzia. “Consideramo-nos sortudos por termos visitado um dos arquipélagos mais bonitos do mundo. Todas as ilhas são diferentes mas todas têm um cenário espectacular”, assegura John. Crêem que os resultados da pesquisa irão ser um sucesso, que para além dos novos registos lhes permitiu um conhecimento real da distribuição das borboletas nas ilhas.
Esta reportagem só foi possível graças ao programa de formação jornalística Beyond Your World