Fugas - Viagens

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A Quintela de Boaventura de Sousa Santos

A vida corria conforme os humores dos catedráticos e a sociedade portuguesa era demasiado fechada. “Qualquer rebeldia intelectual era fortemente punida”, recorda. E essa rebeldia corria-lhe no sangue. “Procurava uma sociedade que me desse outra perspectiva.” Em 1969, partiu para os Estados Unidos para estudar Sociologia. Chegou a passar quatro meses numa favela do Rio de Janeiro, no Brasil, para o seu trabalho de doutoramento, para perceber como funcionava o direito ilegal, o direito informal, de comunidades que se organizavam sem leis, sem carimbos, sem papéis assinados com validade jurídica. Aí trabalhou de perto com a associação de moradores.

Hoje, professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, continua a ensinar na cidade onde nasceu e na Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos. Meio ano em Portugal, outro meio ano na América. Muitas viagens pelo meio e os regressos inevitáveis à aldeia.

O sol quer rasgar as nuvens e, ao final da manhã, há-de conseguir afastar o cinzento que ainda tolda a paisagem. No escritório de Quintela, o chão é de madeira e há lenha a arder numa salamandra que lembra que o Inverno tarda em ir embora. Há livros em prateleiras, em cima da secretária, de mesas, de cadeiras. Vários CD, quadros nas paredes, candeeiros de pé, achas de madeira em antigas panelas de metal. E um gato amarelo e branco que se espreguiça no sofá e não se incomoda com estranhos.

“É aqui que escrevo muitas coisas.” O “tempo camponês”, como lhe chama, desacelera o ritmo a quem continua a trabalhar 13 horas por dia, a ter férias 20 minutos ou duas horas no máximo, a atravessar continentes de avião, a participar em conferências, a organizar investigações em várias partes do mundo. “Tenho esta quantidade de verdes que posso ver de um ritmo diferente”, diz junto à janela do escritório, comentando que terá de aparar a trepadeira que ameaça tapar-lhe alguns centímetros de vista. “Depois das batatas, virão as favas”, avisa com o olhar nos campos.

O professor catedrático de 73 anos, doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, do outro lado do Atlântico, não esquece as raízes. A casa de Quintela mantém a ligação à terra. “Cultivamos tudo. Compramos pouca coisa no mercado, somos pouco dependentes. Produzimos azeite, temos batatas, frangos, coelhos, cabras.” O que se semeia, cria e alimenta é para consumo caseiro. Na manhã do primeiro dia da semana, havia movimentações ao lado de casa que quase passavam despercebidas. Os animais vão ter casa nova e as obras começaram. A mãe, que partiu no final do ano passado, temia que o filho se desligasse das coisas da terra, que perdesse as ligações ao campo. O sociólogo quer mostrar-lhe que isso não acontecerá e a nova guarida para os animais é quase um acto simbólico, uma espécie de homenagem à mãe. “Estamos a fazer um bom curral.”

Lutas perdidas

Em Quintela, também se fala do passado. “Abandonei a religião aos 22 anos. A religião católica era extremamente conservadora.” Criado na religião católica, com comunhão diária até aos 16 anos, deixou de acreditar. É agora um não-crente que tem uma colecção de Cristos como objectos de arte-sacra. A escrita é uma das suas artes e, além dos artigos científicos, o sociólogo tem livros de poesia publicados e é autor de rimas rap que são cantadas nas ruas do Brasil. “O escritor tem muitas formas de escrever. Estas são as minhas formas de escrever sem notas de rodapé”, revela. Formas de expressar o que pensa sem os limites impostos pelas regras académicas.

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