Fugas - Viagens

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A Quintela de Boaventura de Sousa Santos

No Brasil, em Porto Alegre e cidades vizinhas, foi acolhido pela cultura hip-hop e escreveu rimas rap que reuniu no livro Rap Global e que andam na boca de muita gente. Chegou a dar voz às rimas que construiu em ensaios com rappers brasileiros. E não se saiu mal. Um meio artístico de expressar raivas, protestos cantados contra sociedades injustas e que marginalizam. Uma outra maneira de falar de racismo ou de colonialismo que as regras científicas não lho permitem.

Em Portugal, a sua poesia foi distinguida. No ano passado, com Pomada em Pó – Poemas Epigramáticos ganhou a 22.ª edição do Concurso Nacional de Poesia de Fânzeres, da Junta de Freguesia de Fânzeres. Concorreu com um pseudónimo e venceu.

É um homem de causas e, em Coimbra, envolveu-se em várias. Não lhe escapava uma. “Desde os anos 1980, envolvi-me em todas as lutas e em todas perdi.” Lutou para que os eléctricos, iguais aos que circulavam em Lisboa, não saíssem dos trilhos. Em vão. “Foram todos vendidos e trocados por autocarros que a câmara achava que eram mais modernos.” Lutou para que o Teatro Avenida, o único teatro arena da cidade, continuasse a abrir portas para se ouvir ópera. O proprietário não foi sensível aos apelos e acabaria por vender o espaço para um supermercado. Hoje está abandonado.

Em meados dos anos 1990, ajudou a erguer a Associação Cívica Pro Urbe. “Pelo direito à cidade, uma associação supra-partidária porque sou adepto da democracia participativa.” Foi acusado de usar a estrutura para se promover e tentar ser presidente da câmara. As críticas tinham alvos a abater. Envolveu-se na luta contra a incineração de resíduos industriais na cimenteira de Souselas, às portas de Coimbra. O PSD estava na oposição, Sócrates era ministro do Ambiente, e a associação lutou até ao fim. Os planos do Governo não avançaram tal como estavam traçados, mas essa luta não lhe soube a vitória. “Um desfecho incerto”, classifica. A reconversão urbana sempre andou debaixo de olho. Mais uma luta perdida. “Construíram-se monstruosidades.”

“A cidade deu-me muitos desgostos”, confessa. O activista local tornou-se activista global. E foi isso que o salvou. Em 2011, estava no Fórum Social Mundial. Do local para o global, do global para o local. Casa em Coimbra, nos Estados Unidos, refúgio na aldeia. Em Quintela, cheira a terra, há chaminés a deitar fumo e mulheres que sacodem e esticam a roupa à porta de casa. Longe do rebuliço dos dias que passa em Coimbra, tem vista para os “contrafortes da serra da Estrela”. “É fundamental mudar de olhar, de lugar.” “Aqui falo mais devagar”, brinca. Gosta de parar nas varandas da casa, decoradas com flores em vasos de barro, e contemplar a paisagem que vai mudando consoante os humores do tempo.

Boaventura de Sousa Santos coordena programas de doutoramento em várias áreas e é director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, referência na área da investigação das ciências sociais, que surgiu em 1978 e hoje trabalha com 127 doutorados. “Sem rebeldia, utopia e esperança não faz sentido ser cientista social”, afirma. Continua um rebelde intelectual. Defende que, nos dias que correm, “é necessário ser rebelde competente”. É optimista e quando fala em utopia, fala em utopia concreta, numa “busca de possibilidades que existem”. “Há possibilidades que não estão a ser exploradas. A utopia é não reduzir a realidade ao que existe”.

A conversa do mundo

Cidadão do mundo, activista local, activista mundial, rebelde intelectual. Respeitado internacionalmente como pensador das ciências sociais, preza o pensamento livre, independente e crítico. Estudou, analisou e produziu conhecimento em muitas áreas. Investigou como as comunidades se organizam, falou em Estado-providência, em classes sociais, publicou trabalhos sobre democracia e direitos humanos, globalização, sociologia do direito, epistemologia. Tem-se debruçado sobre as questões de cidadania, os modos de produção do poder social, o paradigma da modernidade. Ultimamente tem escrito sobre o estado do país nas crónicas que publica na Visão. Sem filiação partidária no currículo, continua a dizer o que pensa. É polémico. “Nunca fui sectário”, assegura. O estado do país não lhe passa ao lado e o conceito que tanto esmiuçou, de Estado-providência, também é usado para falar nos tempos mais apertados. “Não temos um Estado-providência forte, temos uma sociedade-providência forte, que dá uma almofada às carências do Estado”, e que, cada vez mais, se apoia nas relações familiares, de amizade e vizinhança.

Neste momento, dirige o projecto de investigação ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas: Definindo para a Europa um Novo Modo de Partilhar as Experiências e o Mundo. Foi um dos dois investigadores que conseguiram a aprovação de financiamento do Conselho Europeu de Investigação, um dos mais prestigiados e competitivos financiamentos internacionais para a pesquisa científica de excelência — o que prova muito da sua reputação internacional. O projecto, financiado em 2,4 milhões de euros, envolve vários países — Índia, Moçambique, África do Sul, Equador, Brasil, Bolívia — e um núcleo duro de 20 investigadores internacionais mais uma equipa multidisciplinar, de várias áreas do saber, que estica conforme as necessidades.

O sociólogo quer pensar o mundo ao contrário. “O Norte global, a Europa e a América do Norte sempre sentiram que tinham as soluções e o Sul os problemas. Mas as coisas estão a inverter-se”, refere. O projecto quer perceber o que o Norte global pode aprender com o Sul global porque há problemas e soluções nas duas partes do mundo. ALICE parte essencialmente de duas ideias, de que a experiência do mundo é muito mais ampla do que pode parecer à primeira vista e da dificuldade da Europa aprender com o resto do mundo. “Na Europa, há um certo sentimento que não temos as soluções todas. Com este projecto, pretendemos aumentar a conversa do mundo.” Sem visões colonialistas, sem visões românticas. Mais gente, mais perspectivas. Há poucas semanas, na Índia, organizou uma espécie de oficina universitária em que juntou académicos, líderes de movimentos sociais, mulheres, indígenas que, entre outros assuntos, analisaram o efeito de megaprojectos como a construção de barragens. “Uso o meu saber científico mas só concebo ensinar na medida de poder aprender”, explica.

Continua fascinado pela “diversidade do mundo”. Quintela é o seu refúgio, o regresso às origens, à aldeia tranquila que sossega quem pensa e questiona o mundo. Haverá livros que viajam de mala em mala por vários lugares do mundo e que regressam sempre à casa da família. Ali, abrem-se páginas, lêem-se livros, tiram-se apontamentos, escrevem-se textos, organizam-se aulas, seminários, conferências. Ali, acompanham-se as obras do curral e as colheitas que saem da terra. E prepara-se a próxima viagem do projecto de investigação que está marcada para o Equador. “O que cansa não é o trabalho, é o stress e sobretudo a monotonia”, diz-nos sorridente e sem qualquer sinal de pressa

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