Fugas - Viagens

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A Quintela de Boaventura de Sousa Santos

Por Sara Dias Oliveira

Jogava futebol com bolas de trapos, brincava com carros de madeira que tinham rodas de cortiça, apanhava azeitonas, regava milho com água do poço. Nas férias da escola, ajudava os avós na agricultura. A casa de família, a 30 quilómetros de Coimbra, tornou-se um segundo escritório com uma generosa vista para campos e serras. O sociólogo e professor, que também escreve poesia e rimas rap, enche o peito com aquela paisagem que sabe ser humilde.

As plantas que trepam as paredes, como uma segunda pele que não desgruda do cimento, encostam-se às janelas do escritório e avisam que a Primavera está mesmo a chegar, indiferentes ao calendário das estações instituído pelos homens. Nas traseiras da casa, há mais trepadeiras que cobrem paredes de cima a baixo, a todo o comprimento e largura, deixando apenas o espaço suficiente para as janelas respirarem. A vegetação mais fresca e verdejante ganha força e está preparada para derrubar a camada à superfície que o tempo se encarregou de secar.

Em Quintela, aldeia de São Pedro de Alva, a 30 quilómetros de Coimbra, ouvem-se conversas entre animais. Os pássaros saltitam de árvore em árvore e anunciam que o bom tempo não tarda. Os gatos saltam muros e passeiam sem pressas numa rua onde só passa um carro de cada vez. O tempo passa devagar na manhã do primeiro dia de trabalho da semana.

Na casa dos avós, casa onde o pai nasceu, Boaventura de Sousa Santos derrubou uma parede para abrir uma janela em frente à secretária do seu segundo escritório. Dali, sentado num sofá de couro castanho, vê campos, algumas casas, árvores e serras que se perdem no horizonte e tocam o céu. “As raízes estão aqui. Gosto muito deste campo que não me derruba. É uma paisagem à minha medida: humana, muito humilde.” É o refúgio de dias preenchidos, quando a mente e o corpo precisam de mais calma para pensar. Basta rodar a chave da casa de Coimbra e partir para a aldeia que tem gente que não dá descanso àqueles campos.

O sociólogo conhece bem aquele pedaço de terra. Nas férias da escola, deixava Coimbra, onde nasceu, para ajudar os avós paternos nos trabalhos do campo. A viagem, naquele tempo, ainda sem qualquer itinerário complementar no mapa, chegava a demorar mais de uma hora pela estrada sinuosa que acompanhava o Mondego. Férias significavam ar puro, mexer na terra, brincadeiras, comida com sabor a comida. A avó não era adepta de varejar as azeitonas e, por isso, era preciso tirá-las uma a uma das oliveiras.

O pequeno Boaventura ajudava no que fosse preciso: plantar batatas, regar os campos de milho com a água do poço, olhar pelos animais. E brincava com os amigos e vizinhos da aldeia — um que ainda ali vive numa das casas que vê do seu escritório e com quem se avista com regularidade, outro que trabalha à noite e é difícil encontrar e ainda outro que entretanto partiu para França. Jogavam futebol com bolas de trapos velhos, brincavam com carros feitos de madeira e que tinham rodas de cortiça, inventavam brincadeiras com as canas de milho que apanhavam nos campos. Longe da cidade agitada de Coimbra, onde vivia com o pai e a mãe.

Filho único de uma família humilde, cedo percebeu que a vida não era um mar de rosas. O pai era chef de cozinha no restaurante Nicola, o mais conhecido na Coimbra de então, bastante frequentado pelos doutos professores da universidade. A mãe, doméstica e costureira, fazia camisolas para vender. Boaventura era um aluno brilhante. Aos 12 anos, ensinava o que os outros não aprendiam na escola. “Era uma vida apertada, comecei a dar explicações para ter algum dinheiro”, recorda.

“Era bem educado, era rebelde, difícil de domar e determinado nos estudos.” O pai chegou a pensar que o melhor seria o filho terminar o sétimo ano e ser mecânico de automóveis. A mãe queria vê-lo na faculdade, queria vê-lo doutor. E, naquele tempo, ser doutor era ser advogado. Entrou no curso de Direito em Coimbra e não passou despercebido. Era o melhor aluno. Os professores faziam questão de ir à cozinha onde o pai trabalhava com o pretexto de conhecer o cozinheiro do famoso bife à Nicola, que levava doses generosas de manteiga, para tentarem perceber quem era o pai de tão exemplar aluno que foi construindo o seu percurso escolar com notas brilhantes e bolsas da Gulbenkian — acabaria por ganhar o Prémio Gulbenkian da Ciência em 1996. “Fui o primeiro licenciado na família da parte pobre”, conta. O que, na altura, tinha muito peso e provocava uma certa estranheza a quem olhava de cima para a classe operária, aquela que sujava as mãos.

Nunca chegou a exercer advocacia. Como melhor aluno, ganhou uma bolsa e decidiu estudar o que realmente queria. Partiu para Berlim para aprender Filosofia do Direito. Pela primeira vez, aos 22 anos, sai de Portugal. A despedida na estação velha de Coimbra foi dolorosa para a família. A mãe ficou com o coração apertadíssimo, sofrendo por antecipação a ausência do único filho. Boaventura haveria de seguir de comboio até Paris e dali partir para Berlim. Passou dois anos na Alemanha, regressou a Portugal. As hierarquias sociais, as elites académicas, tornavam-se asfixiantes.

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