As plantas que trepam as paredes, como uma segunda pele que não desgruda do cimento, encostam-se às janelas do escritório e avisam que a Primavera está mesmo a chegar, indiferentes ao calendário das estações instituído pelos homens. Nas traseiras da casa, há mais trepadeiras que cobrem paredes de cima a baixo, a todo o comprimento e largura, deixando apenas o espaço suficiente para as janelas respirarem. A vegetação mais fresca e verdejante ganha força e está preparada para derrubar a camada à superfície que o tempo se encarregou de secar.
Em Quintela, aldeia de São Pedro de Alva, a 30 quilómetros de Coimbra, ouvem-se conversas entre animais. Os pássaros saltitam de árvore em árvore e anunciam que o bom tempo não tarda. Os gatos saltam muros e passeiam sem pressas numa rua onde só passa um carro de cada vez. O tempo passa devagar na manhã do primeiro dia de trabalho da semana.
Na casa dos avós, casa onde o pai nasceu, Boaventura de Sousa Santos derrubou uma parede para abrir uma janela em frente à secretária do seu segundo escritório. Dali, sentado num sofá de couro castanho, vê campos, algumas casas, árvores e serras que se perdem no horizonte e tocam o céu. “As raízes estão aqui. Gosto muito deste campo que não me derruba. É uma paisagem à minha medida: humana, muito humilde.” É o refúgio de dias preenchidos, quando a mente e o corpo precisam de mais calma para pensar. Basta rodar a chave da casa de Coimbra e partir para a aldeia que tem gente que não dá descanso àqueles campos.
O sociólogo conhece bem aquele pedaço de terra. Nas férias da escola, deixava Coimbra, onde nasceu, para ajudar os avós paternos nos trabalhos do campo. A viagem, naquele tempo, ainda sem qualquer itinerário complementar no mapa, chegava a demorar mais de uma hora pela estrada sinuosa que acompanhava o Mondego. Férias significavam ar puro, mexer na terra, brincadeiras, comida com sabor a comida. A avó não era adepta de varejar as azeitonas e, por isso, era preciso tirá-las uma a uma das oliveiras.
O pequeno Boaventura ajudava no que fosse preciso: plantar batatas, regar os campos de milho com a água do poço, olhar pelos animais. E brincava com os amigos e vizinhos da aldeia — um que ainda ali vive numa das casas que vê do seu escritório e com quem se avista com regularidade, outro que trabalha à noite e é difícil encontrar e ainda outro que entretanto partiu para França. Jogavam futebol com bolas de trapos velhos, brincavam com carros feitos de madeira e que tinham rodas de cortiça, inventavam brincadeiras com as canas de milho que apanhavam nos campos. Longe da cidade agitada de Coimbra, onde vivia com o pai e a mãe.
Filho único de uma família humilde, cedo percebeu que a vida não era um mar de rosas. O pai era chef de cozinha no restaurante Nicola, o mais conhecido na Coimbra de então, bastante frequentado pelos doutos professores da universidade. A mãe, doméstica e costureira, fazia camisolas para vender. Boaventura era um aluno brilhante. Aos 12 anos, ensinava o que os outros não aprendiam na escola. “Era uma vida apertada, comecei a dar explicações para ter algum dinheiro”, recorda.
“Era bem educado, era rebelde, difícil de domar e determinado nos estudos.” O pai chegou a pensar que o melhor seria o filho terminar o sétimo ano e ser mecânico de automóveis. A mãe queria vê-lo na faculdade, queria vê-lo doutor. E, naquele tempo, ser doutor era ser advogado. Entrou no curso de Direito em Coimbra e não passou despercebido. Era o melhor aluno. Os professores faziam questão de ir à cozinha onde o pai trabalhava com o pretexto de conhecer o cozinheiro do famoso bife à Nicola, que levava doses generosas de manteiga, para tentarem perceber quem era o pai de tão exemplar aluno que foi construindo o seu percurso escolar com notas brilhantes e bolsas da Gulbenkian — acabaria por ganhar o Prémio Gulbenkian da Ciência em 1996. “Fui o primeiro licenciado na família da parte pobre”, conta. O que, na altura, tinha muito peso e provocava uma certa estranheza a quem olhava de cima para a classe operária, aquela que sujava as mãos.
Nunca chegou a exercer advocacia. Como melhor aluno, ganhou uma bolsa e decidiu estudar o que realmente queria. Partiu para Berlim para aprender Filosofia do Direito. Pela primeira vez, aos 22 anos, sai de Portugal. A despedida na estação velha de Coimbra foi dolorosa para a família. A mãe ficou com o coração apertadíssimo, sofrendo por antecipação a ausência do único filho. Boaventura haveria de seguir de comboio até Paris e dali partir para Berlim. Passou dois anos na Alemanha, regressou a Portugal. As hierarquias sociais, as elites académicas, tornavam-se asfixiantes.