Na esquina da Brivibas com a Stabu, o obscuro edifício neoclássico assinado por Aleksandrs Vanags tem, estranhamente, as portas abertas. Ainda assim, nem todos se atrevem a entrar. Uns acreditam que poderão reavivar memórias presas à tortura, a cadeiras de interrogatório, ao purgatório da deportação. Outros preferem lidar com a situação de frente, para se livrarem dela.
Há 23 anos que a antiga sede do KGB em Riga se mantinha encerrada ao público e foi preciso a Capital Europeia da Cultura (título partilhado com Umeå, na Suécia, ver texto nestas páginas) chegar à cidade letã para que as portas se voltassem a abrir. Até Outubro, uma mostra do Museu das Ocupações, visitas guiadas às caves do KGB e outras cinco exposições sobre as relações entre o indivíduo e o poder tomam posse deste lugar simbólico do domínio soviético. “2014 é a altura perfeita para mudar o destino da Stura Maja [“casa da esquina”], para abrir portas e enfrentar a experiência e os acontecimentos ali escondidos, a fim de compreendê-los profundamente e recriá-los”, argumenta a Fundação Riga 2014. E Tom Kokins, arquitecto e activista cultural em Riga, compõe: “Se há a ideia de pintar a fachada [do edifício] de preto, o interior poderia ser consistentemente branco — um futuro brilhante apesar do passado sombrio.”
É assim que Riga se tem mostrado nos últimos tempos — uma cidade de contrastes —, daí que apregoe a diversidade como um dos principais trunfos da programação cultural para este ano. Riga detém “um corpo antigo mas uma alma jovem”, sintetiza Diana Popova, uma das activistas da República de Miera Iela (www.mieriela.lv) e coordenadora de projectos no Centro de Arte Contemporânea da Letónia. Miera — o bairro das lojas de design, cafés cosy e núcleos artísticos — é um exemplo de como a energia criativa tem despontado na capital letã.
“Para uma pessoa que não conheça a Miera Iela, pode parecer-lhe uma rua perfeitamente normal no centro de Riga, mas, na verdade, é muito simbólica. Costumamos dizer que está nos principais processos da vida — as pessoas nascem aqui (na Maternidade de Riga) e são enterradas aqui (no cemitério da cidade). E o facto de existir uma comunidade informal, transversal à rua, que acredita que este lugar deve ser social e culturalmente melhorado é um grande passo para a mudança de uma sociedade tradicionalmente alienada”, analisa Diana. Para Ana Catarina Pinho, fotógrafa portuguesa que participou em Maio no evento Riga Photomonth, “há [na cidade] um grupo de pessoas com uma enorme vontade de trabalhar o campo das artes visuais e criativas em geral, pessoas bastante activas que desenvolvem projectos artísticos e culturais, mesmo que sejam sem fins lucrativos”. Assim acontece.
Ao longo do ano, a programação da Capital Europeia da Cultura (disponível em www.riga2014.org) integra mais de 200 eventos e projectos culturais, que cruzam os campos da História, literatura, teatro, música, fotografia, street art, cinema, pintura e outras artes sem morada fixa. No entanto, “é um pouco difícil saber quando um evento faz parte do quadro de Riga 2014 ou não, uma vez que a cidade está permanentemente viva”, nota Agita Salmina, colaboradora na galeria Diatom Art e guia turística na capital da Letónia.
A cru, por favor
Porque a cultura não passa unicamente pelas artes, antes da fotografia e da pintura, descemos às entranhas da imagem, no mercado central de Riga. À saída do Leningrad, onde se dependuram soutiens atrás do balcão e se bebem borras rotuladas de café, o chamamento vai na direcção dos comboios, junto à margem do rio Daugava. Ali se estendem cinco pavilhões gigantes que antes serviam de estacionamento a zepelins e que hoje abrigam o maior mercado e bazar da Europa. Desconhece-se o escoamento de tantas toneladas de alimentos, objectos e roupas, mas o certo é que o Rigas Centraltirgus tem mais afluência do que qualquer shopping made in Ocidente. São 72.300 metros quadrados de morangos e mirtilos, pilhas de carne e de peixe fumado, leite fresco em garrafas de vidro, bolos a 30 cêntimos. E uma experiência cultural entre ervas e chás terapêuticos, rostos redondos e mãos cozidas pelo gelo. Apesar do crescimento acelerado e espontâneo de grandes superfícies, cadeias de fast food, pubs e discotecas (Riga tem a vida nocturna mais reputada dos países bálticos. Tornou-se, inclusive, um popular destino de turismo sexual, uma vez que a Letónia é um dos oito países europeus onde a prostituição é legal e regulamentada), o comércio tradicional parece manter o seu papel intacto na dinâmica da cidade. Contraste número dois.
Depois de uma deambulação satisfatória pelo Centraltirgus, sentamo-nos no café-cantina em frente para sorver a paisagem. Há sopa de carne, saladas afundadas em maionese, bolos semifrios e pão de forma. Voltados para as janelas luminosas, quatro casais de meia-idade observam as mulheres em frente, que vestem e vendem flores do campo sob o milagre báltico do sol. À senhora da primeira mesa o batom cor-de-rosa assenta terrivelmente, mas é tudo uma questão de harmonia: a maionese emproa-se nos cantos da boca pintada de beterraba, a sobremesa de mirtilos e morangos aguarda sobre a mesa e o pequeno copo transparente tinge as bochechas deblush. Através da janela, cruzam-se eléctricos, comboios, barcos e autocarros. Todos os transportes vão dar a Riga, enquanto nenúfares estáticos transpiram sobre o Daugava. Terceiro contraste.
Ainda sem coragem para palmilhar o centro histórico, declarado Património Mundial pela UNESCO em 1997, seguimos em direcção à Kalpaka bulvaris, onde se ergue a Academia de Arte da Letónia e se abre caminho para o imponente Museu Nacional de Arte Letã. O passeio faz-se pelas colinas tímidas do Parque Bastejkalns, aventura-se em pontes sobressaltadas e respira em fachadas de estilo gótico nórdico aparecidas entre ramagens. Ao fundo, a Estátua da Liberdade, onde muitos locais depositam flores diariamente, é musicada por um violino de rua, subtil mas vibrante (Riga é forte num classicismo que vai desde a ópera até ao ballet. A Ópera Nacional da Letónia foi dirigida por Richard Wagner nos anos 1930). O canal Pilseta vai-se quebrando em margens verdes até desaguar a vista nas três bailarinas nuas esculpidas por Parsla Zalkalne. Dançavam em nome da paz, nos anos 1970 (data da obra), mas em 1991 foram assaltadas pelo exército soviético, que apontava, então, ao Ministério do Interior. Ainda hoje se sentem as balas.
O bolo de Estaline
Ao fundo, a Academia de Artes da Letónia congela a panorâmica que seguia em continuum. Com exposições regulares de alunos e artistas letões, o edifício neogótico merece um despreocupado percurso ao longo de corredores, esculturas brutas e muitas peças em vidro. “Vamos tomar um chá?” Ouvimos a conversa ao lado e não hesitamos em seguir os passos daquelas duas estranhas menos estranhas do que qualquer estrangeiro. É então que não há volta a dar: rumamos ao centro histórico. O mapa diz-nos que, entre muralhas, há uma sinagoga, uma catedral luterana, uma igreja católica e uma anglicana. Apesar de a religião ortodoxa ser a mais praticada na cidade, os lugares de culto que lhe pertencem situam-se fora do núcleo histórico.
Uma rua estreita, quase despercebida, faz-nos perder o rasto das duas letãs sedentas de chá. As portas da Peitav Shul são guardadas por um judeu solitário cuja língua apenas se desdobra após a entrega, em mãos, de um par de moedas. Dali surge a história: esta é a única das 14 sinagogas de Riga que foi poupada pelos nazis. Durante a II Guerra Mundial, o edifício com traços Art Nouveau serviu de armazém militar. Hoje, está impecavelmente restaurado, exibindo ramos de palmeira em folhas de ouro desde o azul celeste que desce do céu à terra.
Regressamos às ruas. Um pouco a fazer lembrar a Grand-Place de Bruxelas, dada a exuberância arquitectónica, mais do que um lugar de transição, a Ratslaukums é um chão de paragem. Por isso, sentamo-nos frente a um relógio dourado, a ver o tempo. No topo da mais alta colina, avista-se o castelo; no lugar da plebe, compram-se amêndoas caramelizadas. E como quem nos quer fazer avançar a marcha, a vendedora de aromas sussurra que “a melhor vista de Riga é do Palácio da Ciência”. Há quem veja no edifício geométrico e realista o “bolo de aniversário de Estaline” ou o “Kremlin de Riga”, mas, à chegada, o que nos assalta é o charme de um soviético bruto que, amolecido com o tempo, nos deixa subir ao 17.º andar para admirar uns telhados rasos e outros pontiagudos da cidade.
Prosseguimos até à Maskava Iela (Rua Moscovo, traduzindo à letra), por onde passa o distinto eléctrico azul. Dos edifícios envidraçados moldamo-nos ao tijolo até chegar a quarteirões inteiros de madeira. “Vivo em Riga há cinco anos e reconheço que é uma cidade saturada de contrastes — na mesma rua, podes encontrar um prédio moderno coberto de espelhos e uma casa do século passado prestes a desmoronar-se. O mesmo acontece com a qualidade de vida das pessoas. Portanto, nunca me aborreço”, conclui Diana Popova.
À medida que os pés se afastam do centro histórico, desaparecem também as meninas de mini-saia e cabelos lisos. O que vemos turva-se na neblina. Parecem homens de olhar obtuso que, aos pares, jogam cartas em cafés fumarentos. Umas quantas cúpulas ortodoxas depois, correm boatos, em russo (perto de metade da população local é russófona), de que numa paralela à Maskava uma espécie de mercado se compõe de quinquilharia. Foi neste bairro que se criou o gueto dos judeus, em tempos de guerra, e hoje ainda se parece fazer silêncio por respeito a este capítulo cinzento da História. Cruzamos ruas e garagens, pátios de nada, praças vazias à hora da missa, e eis que o Latgalite se afunila por detrás de grades atarantadas. Aqui apenas se come com os olhos e a colectânea a céu aberto é fresca de objectos non-sense. Desde porcas e parafusos avulso a fotografias expropriadas, facas com fio de ferrugem, máquinas de lavar a roupa e passaportes da URSS, encontra-se de tudo. É uma boa forma de viajar ao passado através de postais ilustrados e ao presente nos rostos de quem ainda não o alcançou. Sob placas de zinco, os comerciantes empilham câmaras-de-ar em panelas e cestos de verga. Cegos, surdos, mudos. Indiferentes. Talvez nem estejam interessados em vender. Ali ficamos, com eles, a vasculhar a cidade no contraste de fotografias a preto e branco, sabendo que, depois das mãos gretadas de Maskava, Riga nunca mais será a mesma.
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Riga, solstício europeu encostado à Rússia