Sentamo-nos com ele numa das divisões da casa que foi outrora restaurante. “Ainda nos telefonam para marcar refeições, mas está completamente fechado”, comenta. “Foram 23 anos e era muito cansativo. Tínhamos que parar.” Agora, Yves, que estudou pintura na Academia das Artes de Antuérpia, pode por exemplo dedicar mais tempo aos seus quadros. Vemos muitos deles pendurados nas paredes ou encostados no chão à espera de arranjar algures um espaço para si na casa ou numa próxima exposição. Montou a primeira no ano em que chegou a São Miguel e continuou a fazê-las regularmente na ilha. Na propriedade, além da casa que era restaurante, tem a sua residência e o atelier, o “pequeno casulo” onde passa as noites quando chega a inspiração. Sempre a noite. “Não pinto durante o dia. A noite é sagrada.” Põe a tocar música, a “melancólica” (“os Nocturnos de Chopin, Mahler, Lou Reed”), e entrega-se à tela e aos pincéis.
Em 2011, passou a pintar também fora do atelier. Fora visitar um amigo a Lagoa e uma casa no terreno chamou-lhe a atenção. “Tinha uma janela com basalto à volta e estava acimentada.” Aos olhos de Yves, estava ali uma moldura. Perguntou se podia pintá-la e fê-lo numa das tardes seguintes. Enquanto olhava a parede em branco pensou no que poderia desenhar ali. “Gosto desta ilha, da sua natureza e das suas pessoas. Pensei no coração e em flores. Mensagem: o meu amor pela natureza e o amor pelas pessoas.”
De regresso a casa, terminada a pintura, recebe um telefonema. Era a mulher do amigo. Assistente social, regressara do trabalho cansada e deprimida depois de um dia particularmente difícil. Mas estava feliz ao telefone. O seu espírito animara-se ao deparar com a pintura que Yves deixara e ligou para agradecer o sorriso que lhe devolvera. “Se fazes as pessoas felizes com um pequeno desenho, tens que continuar”, disse-lhe depois Roland. Yves assim fez. Até hoje, não mais parou.
Depois dessa primeira pintura, regressou a Lagoa em busca de mais paredes que pudesse pintar. Começou também a escrever o seu endereço electrónico junto à assinatura. “Boom! Foi uma bola de neve.” Não mais parou de encher São Miguel de flores e corações. No dia anterior à nossa visita, pintara o número 278. “Fi-lo na Caloura. São duas girafas que se beijam”, conta. Faltam apenas 87 para cumprir o objectivo: um coração por cada dia do ano. “Depois acabo. Não posso continuar nisto para sempre”, confessa com uma gargalhada.
Não faltarão coisas para fazer ao belga mais açoriano que existe. Ou açoriano mais belga, que no caso, já vai dar ao mesmo. “Os açorianos são como os belgas. São pessoas afáveis, mas que não te dizem que a porta está aberta. Isso leva tempo e a amizade constrói-se demoradamente. Com tempo, serás ou não aceite. O mesmo acontece com os açorianos.”
Claro que a realidade não é homogénea. As diferenças de temperamento e de traços culturais que marcam cada uma das ilhas do arquipélago manifestam-se também no interior de São Miguel. “Há sítios em que as pessoas sussurram e são mais coscuvilheiras, há outros, como Rabo de Peixe, de que gosto muito porque te dizem as coisas na cara. Prefiro assim.” O melhor, diz, é que a condição insular obriga à convivência. “Ricos, pobres, todos estão misturados. Acho que isso é das coisas mais bonitas desta ilha. As pessoas aceitam-se porque sabem que têm que viver juntas.”