As mãos de Maria Lucília são escuras, com sulcos como os das encostas percorridas pelo vento da Gardunha. Nos últimos cinquenta anos, Maria parece ter transferido a mocidade da sua pele para a “pele” vermelha e resplandescente das cerejas. O segredo fica bem guardado.
“Há 30 anos não havia tantos pomares. Havia burros e levávamos os baldes para o combpio, que ia para Lisboa.” Há duas mulheres nos longos corredores verdes deste cerejal que parecem não ter fim — o Fundão, a Gardunha, tudo por aqui parece um imenso cerejal, de braços abertos, pesados. Explorá-los é mágico. O vai-e-vem de baldes coloridos, as escadas de madeira presas e assimiladas pelas árvores, os homens camuflados, as conversas que são como as cerejas. “Podem comer à vontade, duas de cada vez.”
Palavra puxa palavra, palavra puxa cereja, cereja puxa cereja. “São quase 100 quilos por dia por pessoa”, ouve-se por entre a folhagem. As mãos sulcadas, rudes e meticulosas, apanham 100 quilos de cerejas por dia nos corredores verdes da Quinta do Pombal, na Aldeia Nova do Cabo. Nós, com a barriga — com a ajuda dos olhos —, comemos 100 quilos de cerejas por dia. “Alguma rachada a gente come”, sorri Ana Mota, mãos cheias a olhar para o balde azul. Só mais estas duas. Estavam a rir-se para mim.
Carlos sabe que “as variedades principais são umas 20”. Há por ali uma escala em cartão para tirar dúvidas. “Esta é calibre 32, a melhor.” A plantação de cerejeiras foi iniciada na serra da Gardunha há mais de cem anos, cobrindo agora mais de metade da área da freguesia de Alcongosta, onde se calcula que a produção de cereja atinja as mil toneladas. “Todas as pessoas têm meia dúzia de cerejeiras”, garante Manuel Raposo (71 anos), que não come cerejas em casa. “Só como na árvore, em casa não.” Entre as variedades autóctones, e outras de origem espanhola e canadiana, destacam-se nomes firmes, carnudos e doces como Burlat, Maringa, Cristalina, Morangão, do vermelho vivo ao vermelho púrpura.
No Fundão, que já proibiu a tradicional venda de cerejas à face da estrada, a previsão de produção de cereja para este ano ronda as seis mil toneladas — que representa cerca de 50% da produção nacional. Aqui, onde toda a gente parece ter pelo menos seis cerejeiras à porta, toda a gente parece ter pelo menos uma receita com cerejas, o “ouro vermelho” da região, um fruto que, diz quem sabe, “nem sequer é muito fácil de trabalhar”, dadas as suas características. Neste universo muito Charlie e a Fábrica de Chocolate, o mais difícil é não comer um (dois, três ou seis) pastel de nata que sabe a fruta, um pastel com polpa e pedacinhos de cereja fresca descaroçada — uma pérola recém-inventada e que ao longo do último ano comercializou cerca de 200 mil unidades —, não contar passas de cereja ao lado de uma pratada de arroz de carqueja, não lamber molho de cereja de carnes suculentas, não comer à colherada um bom pudim de cereja ou sorver ao sol o refrescante gaspacho de cereja.
Como as conversas, também a estratégia da Câmara do Fundão gera estratégia. Este ano, a campanha da cereja prevê o lançamento de uma série de produtos, que vão desde o bombom de gelado de cereja (parceria com a Santini, marca com que o Fundão já tinha o gelado de cereja), um iogurte grego de cereja (com a Yonest), chá preto aromatizado com cereja, lingotes de cereja tipo barras energéticas e uma bola de Berlim com recheio de cereja (parceria com a Sacolinha). “O lançamento de novos produtos é um dos eixos da nossa estratégia tendo em base a internacionalização”, disse à Fugas Paulo Fernandes, presidente da Câmara. Está prevista a distribuição de cerejas na classe executiva dos voos da TAP (entre 8 e 14 de Junho), assim como em 48 estações de serviço em auto-estradas. Para o Verão, o Fundão conta ainda apresentar-se nas praias portuguesas (Lisboa e Algarve) com cereja gelada.
Devastada por incêndios há 15 anos, as espécies arbustivas já se instalaram na serra da Gardunha, por esta altura pintada com as cores da giesta amarela, mas um verdadeiro arco-íris sazonal rasgado pela ribeira de Alpreade, onde descansam as ruínas da antiga fábrica de cobertores de papa (à espera de requalificação). O Fundão, como as cerejas, reinventa-se — como a vista do castelo de Castelo Novo (a última das aldeias históricas), como as suas ruas calcetadas, as portas pintadas e as caleiras de água alimentadas pelas nascentes da serra. O Fundão rima com tradição. E azar de quem, por culpa da modernidade, nunca verá o leite a escorrer pela francela e o cincho (instrumentos usados para fazer queijo) a apertar a coalhada. Azar de quem nunca irá colher uma manada de poejo, o chá das mulheres grávidas e dos homens bêbados — das pessoas de barriga cheia, portanto. Azar de quem nunca irá estender o braço para agarrar num punhado de cerejas.
Natura Glamping
2015: A serra da Gardunha no espaço
Em Janeiro de 2015, quando as plataformas se elevaram e esferas brancas aterraram, houve quem tivesse corrido até à serra para saudar os extraterrestres. Estamos na Gardunha, uma serra magnética que recentemente atraiu o Natura Glamping (glamour + camping), sete tendas de luxo que parecem ter saído do 2001: Odisseia no Espaço, do Interstellar, do Oblivion ou de qualquer outro filme de ficção científica com cenários minimalistas de cortar a respiração, estruturas de um branco puro, viseiras translúcidas e um argumento do tamanho de um planeta.
O nosso planeta chama-se Gardunha — e “Portugal desconhece a Gardunha”, garante Jorge Pessoa, argumentista deste projecto, juntamente com a esposa Elga Correia e Nuno Dias —, uma serra há muito um refúgio para histórias de objectos voadores não identificados (basta “googlar”) e que agora foi surpreendida com a aterragem de sete tendas (uma, com cerca de 100 metros quadrados, disponível para eventos) em formato geodésico, instaladas numa área de 500 metros quadrados junto à Casa do Guarda (com dois quartos, uma sala e uma cozinha), em Alcongosta, espaço integrado na Rede Natura 2000 e agora como uma concessão turística de 20 anos.
“Dizem que a serra é oca, que é uma base de ovnis”, sorri Jorge Pessoa. “Acho que fui induzido a trazer para cá este projecto em forma de nave espacial.” Jorge trabalhava em informação médica com “muita pressão, muito desgaste”. “Coisas que ao longo do tempo vamos sentindo na saúde e na qualidade de vida”, regista. “Pensamos que estamos numa situação de conforto. Mas é aparente. Lamentamos mais tarde. Achei que era altura de terminar com o stress do dia-a-dia.” Optou por algo “diferenciador”. Viajou até à Suíça, onde o conceito de “campismo com glamour” já existia, e, depois de tirar as medidas ao projecto Whitepod, regressou a Portugal com uma estrutura geodésica de elevada resistência ao vento e ao peso da neve. “É um complexo cálculo matemático que se molda às nossas necessidades”, explica. As tendas foram instaladas em Janeiro. “Nesse dia nevou. E foi um teste aos ventos cruzados, que nesta região podem atingir os 160 quilómetros hora. Só tínhamos metade dos parafusos colocados e a estrutura nem abanou.”
As estruturas de que se fala são iglus ou “Domus” — que fazem lembrar as cúpulas das torres da serra da Estrela. São capacetes de astronauta com um espaço de 35 metros, com capacidade para quatro pessoas e equipadas com roupeiro, duche de hidromassagem, minibar, salamandra, ar condicionado, uma porta — de fechos de correr — com ar futurista e uma “viseira”, uma janela panorâmica de cerca de oito metros com vista para a serra ou para a linha do horizonte.
“Estamos no local com maior amplitude visual da serra da Gardunha. Covilhã, Fundão e Belmonte para um lado. Monsanto e Penha Garcia do outro. E daquele lado barragem e Castelo Branco. Estamos no coração da Gardunha.” Estamos num refúgio natural, num manual de morfologia geológica, num mapa pejado de percursos para caminhadas (bicicletas BTT e segway TT disponíveis), num sítio onde há sempre muito o que fazer — e onde também há muito para quem não quer fazer nada. Há aldeias de xisto e históricas, há uma das melhores rampas de asa delta da Europa, há “as cores da serra” e há “pessoas que vão dizer que já viram ovnis”, pessoas que falam de chaves douradas, grutas subterrâneas e naves espaciais de um branco puro. “Falam com uma seriedade tremenda e só falam se tiverem confiança na pessoa que têm à sua frente.” Se há pessoas que não sabem como chegaram à serra da Gardunha, também há quem não sabe se daqui quer sair.
Natura Glamping. Alcongosta, Fundão. Tel.: 938 387 600. www.naturaglamping.com
Preços: Domus geodésica (duas pessoas) - 85 euros (semana), 120 (fim-de-semana)
GUIA PRÁTICO
Como ir
De carro: Do Porto, basta trocar a A1 pela A25 em Aveiro e depois passar para a A23 até Castelo Branco. Para chegar ao Fundão, é só seguir a estrada nacional 18. Quem conduz a partir de Lisboa pode tomar a A1 e seguir para a A23 antes de chegar a Torres Novas. A partir de Castelo Branco, a N18 desenha a rota final.
Onde dormir
Cerca Design House
Largo da Praça, 1, Chãos, Donas, Fundão. Tel.: 96 4756466. www.cercadesignhouse.com
Este solar do século XVII é conhecido como Casa da Cerca (mas já foi Casa dos Machados). Oferece dez quartos com nomes de ervas e plantas regionais, uma piscina e um jacuzzi construído no espaço do antigo estábulo. O quarto Feto fica na antiga capela da casa, que na zona do bar revela azulejos da lisboeta Igreja do Sacramento (nas casas-de-banho também há vestígios de azulejos de cozinhas antigas).
Onde comer
O Mário
Há quem diga que no Fundão come-se “dia sim, dia não”. Percebe-se a teoria quando colocamos em prática ementas como a do restaurante O Mário, que nasceu há 35 anos na E.N.18, que liga o Fundão à Covilhã. Pelos cantos do mesmo prato — não somos esquisitos — podem acomodar-se o recheio da panela no forno (arroz de serpão com carnes brancas de porco e enchidos), o arroz de carqueja (com entrecosto de porco), a posta de salmão grelhado com pudim de cereja e o leitão do monte com passas de cerejas. E ainda conseguimos empurrar o requeijão com doce de cereja, as papas de carolo e um pedaço de tigelada beirã — sim, assumimos: não comemos a sopa de feijão para nos vingarmos nas sobremesas. Amanhã é dia de não comer.
Casa da Lagariça
Aviso. Não há “refeições ligeiras” no Fundão e arredores. Somos iludidos com falinhas mansas e pratos pequenos, mas, no final — da refeição — estamos sempre de papo para o ar, digestivo numa mão e uma apetecível ementa “ligeira” para o dia seguinte na outra. Na verdade, estivemos quase, quase a conseguir provar uma refeição ligeira. A Casa da Lagariça, Castelo Novo (com cerca de 100 habitantes), nem sequer é um restaurante. É uma loja de artesanato no Largo Petrus Guterri que colecciona artistas da Beira. Mas um simples telefonema (96 2607493) pode transformar um solarengo pátio de pedra num atelier de cozinha criativa — se tudo correr normalmente — com o chef Rui Cerveira, da Casa da Esquila, Casteleiro. Carpaccio de toucinho com limão e alho, empadas de porco, flor de sabugueiro frita, salada de favas com tiras de cenoura a enrolar nacos de farinheira, queijo amanteigado e broa triga e milha. Gaspacho de cereja antes. Papas de carolo (e cerejas) depois. E um digestivo, se faz favor! Amanhã é dia de não comer.
Hermínia
No Fundão, as cozinhas só aceitam avós. Se não é verdade, parece. Em 1946, a avó Hermínia ainda não era avó e este restaurante era só uma taberna. Aqui fica uma sugestão “ligeira” do restaurante Hermínia, com sabor a tachos e panelas das nossas avós. Entrada: espargos selvagens com ovos; cherovias. Pratos principais: aroz de carqueja com enchidos e medalhões com molho de cereja. Sobremesa: pudim de cereja e cerejas da Gardunha. Lembrem-me: amanhã é dia de não comer!