São horas de caminho à procura de uma cama vaga em Hamburgo. As letras de néon e a carpete gasta a dar as boas-vindas são constantes, os edifícios a encher o olho de design também. “St. Georg é o melhor bairro para ficar, sem dúvida”, garante uma mulher de porte de anjo com os pés descalços sobre a relva. (Na cidade do schietwetter, como lhe chamará mais tarde Pedro Lopes, português a viver em Hamburgo, um dia de Verão impõe tanta nudez quanto possível). “Sternschanze é o bairro do momento, com mais vida alternativa, onde circula a malta jovem, os artistas, o pessoal criativo”, aponta um rapaz de rastas que lê Kafka à beira-Alster, o lago mágico da urbe aquática. (Além do rio e dos lagos Alster, Hamburgo faz-se do rio Elba — que se multiplica em canais — e do mar do Norte, onde se encaixa o segundo maior porto europeu). Passos ligeiros depois, em frente à imponente rathaus (a câmara municipal), encontramos um executivo a folhear um hambúrguer. O gel sobre o cabelo louro não deixa escapar o risco ao lado para nenhum outro, e é com a mesma segurança dessa linha que ele nomeia Altona como o lugar ideal para acordar: “É uma parte da cidade onde, desde a frente portuária até à praia, há uma grande variedade de ambientes. Começa-se numa zona multicultural, cheia de vida, e de repente estamos numa linha de casas e jardins muito tranquila, abastada, voltada para o mar.”
As melhores decisões aparecem junto aos lagos (aqui, existem o grande e o pequeno, mais central, de onde eclode um repuxo feito géiser islandês), enquanto flutuam barcos a motor e à vela, também eles à procura do melhor rumo. Nas margens desta bacia doce, assim que o sol vai descendo do lado de lá, juntam-se os citadinos a celebrar a natureza que penetra a crescente Hamburgo. E por mais que as bocas nos falem direcções diferentes, quando vemos o mundo passar, todas as t-shirts vão dar a St. Pauli, o bairro mais bairro da segunda maior cidade da Alemanha.
McCartney, Merkel
St. Pauli é um coração revolucionário, onde, em 1960, os ainda tenros The Beatles davam vida aos primeiros concertos e turbulências, enquanto Angela Merkel (nascida em Hamburgo) entrava para a escola primária. Se a esquadra de Davidwache, inserida em Reeperbahn (o red-light district hamburguês), ainda guarda memória desses tempos, em que Paul McCartney terá passado uma noite detido pelo crime de fogo posto, Dezembro de 2013 serviu para reavivá-la: no contexto de manifestações (que chegaram a mover mais de 700 pessoas) contra a gentrificação de Hamburgo, a deportação de refugiados de origem africana e o fecho do Rote Flora (um dos centros culturais de inspiração anarquista mais antigos da Europa, que iniciou actividade em 1989), um grupo de 30 pessoas atacou a dita esquadra policial. Na sequência do evento, três zonas de Reeperbahn foram declaradas perigosas, “mas é absolutamente tranquilo andar por lá”, garante Susana Laurentino, a viver em Hamburgo há um ano, precisamente desde que as águas acalmaram.
Além de exibir este sentido de identidade expresso num bairrismo latente, Hamburgo não cede. Tem frentes muito vincadas, totalmente opostas, que crescem lado a lado e tornam a capital do Norte alemão num núcleo pulsante de culturas antagónicas. Num passeio pela rota dos graffiti, na parte ocidental da cidade, percebemos que se antes Sternschanze era o lugar das rendas baixas, procurado e habitado por artistas e estudantes, a actual especulação imobiliária está a trazer uma nova vaga de cafés e negóciostrendy à zona. “Estamos todos cientes do problema da gentrificação. As rendas dispararam, é muito difícil encontrar casa e as pessoas começam a ter sérias dificuldades. Por isso, a população revoltou-se”, conta-nos Cynthia, que investiga a intervenção (principalmente pela arte) no espaço público urbano e é guia turística nos tempos livres. Foi esta a principal motivação dos protestos de 2013 e 2014: o medo que a população local seja empurrada para os subúrbios e que o centro urbano se torne uma quimera apenas possível para alguns.
Para já, o tempo e a força fizeram com que as autoridades recuassem. O Rote Flora continua em pé e a dar concertos, e St. Pauli mantém-se o bairro do “povo” e um símbolo de resistência. Pelo meio, houve ainda disposição para desafiar o humor: quando um polícia confiscou um piaçaba a um manifestante, alegando o seu potencial perigoso, os locais tomaram o objecto como símbolo oficial dos protestos, espalhando-o pelas ruas da cidade. Isto é Hamburgo.
A maior festa do ano
Chegamos, pois, a St. Pauli. Os prédios gritam: “Nenhum homem é ilegal”, dando as boas-vindas a quem chega à cidade “sem papéis”. Há um café árabe na Paul-Roosen-Straße, uma loja de discos reggae-dub-funk-por-aí, esplanadas cheias, lojas de conveniência, clubes de striptease e prostitutas, polícias simpáticos, cabelos punk de todas as cores, barracas montadas a grelhar salsichas, sound systems ao longo da linha portuária. “É o aniversário do porto de Hamburgo, a maior festa do ano. Vem toda a gente para cá, por isso, encontrar um hotel não será fácil. Eu também ainda não tenho onde dormir, mas sei que aqui ninguém me vai deixar ficar na rua”, confirma Nick, enquanto tira garrafas de schnapps (aguardente alemã) de uma caixa de papelão.
A cada ano, o aniversário do porto de Hamburgo (o 826.º foi celebrado entre os dias 8 e 10 de Maio) faz-se assim: um ballet de barcos rebocadores; veleiros vindos da Rússia; paradas de todo o tipo de embarcações; fischbrotchen (sandes de peixe, habitualmente, o arenque) ao pequeno-almoço; t-shirts e pins de St. Pauli à venda; concertos gratuitos a toda a hora; tecno ao pôr-do-sol; manifestos sociais; cerveja artesanal e comida vegan; danças na rua com desconhecidos. O anonimato é garantido e aplaudido. Isto é Hamburgo.
De cama já segura — que há sempre uma agulha a brilhar no palheiro — , a noite é menina às 22 horas, por isso, vamos explorar os palcos e barracas junto ao Fischmarkt. O lugar onde o peixe é rei desde 1703 tornou-se evento pela postura arisco-simpática dos marinheiros e pescadores de voz rouca que preparam e leiloam a matéria fresca vinda do mar do Norte. Acontece, religiosamente, todos os domingos, das 5h30 às 9h30 — sim, da manhã —, e é o lugar onde veremos homens de barba rija a cortar salmões com lâminas de meio metro e agricultores prolíficos do mundo do espargo, do cogumelo e do rabanete. Pelo meio, o homem mais sorridente de Hamburgo venderá café num standonde a bebida despertadora é o bem menos valioso; dançará um Johnny Clarke protuberante, vindo de colunas hi-tech; e marcará as origens com convicção: “Café americano? Italiano? Hum, talvez café noir, à la française? E porque nunca o café africano, que é de onde ele vem mesmo? Pois aqui nesta tenda é a única coisa que se vai beber: café africano para tooooooda a gente!”
Nos palcos montados para esta noite, ainda não faz falta a cafeína. Ao cimo das escadas, de máscara tropical, Kuto Quilla passa cumbias endiabradas para a multidão. Quem o transpõe chega ao palco do rock, cruza a tenda da rádio indie, leva um copo de cerveja para o caminho. Famílias inteiras na fila para o algodão doce, rapazes de cabedal tocam guitarra na boca do metro, miúdos jogam à bola entre palmeiras de plástico. “Isto é sempre assim?”, pergunta, em inglês, uma adolescente ao namorado. “Não sei, mas se for, é muito bom.”
Chuva anarquista
Descemos a rua Pepermölenbek até ao parapeito da cidade, enquanto a lua grande se cobre de pudor. Ao longe, buzinas vindas do mar bolçam o som de quem chega e quem parte, e nos poucos minutos em que nos distraímos a ouvi-las o céu já é outro, sem estrelas, e a chuva desce dura sobre o asfalto. (Em Hamburgo, o mar e os ventos do Norte têm o poder de escadear as quatro estações do ano no mesmo dia).
Abrigado num bar de madeira e cervejas altas, o inglês Robert ri como se a festa durasse há horas tremendas. “Nunca me aconteceu tal coisa: chegar a tempo do fogo-de-artifício e não ver nada porque estou atrás de um poste a abrigar-me da chuva! Mas, bom, que se lixe o fogo!”, conclui, para encetar o brinde e a conversa. Robert costuma encontrar-se todos os anos com os amigos do liceu para comemorar a juventude (tem 53 anos) numa cidade da Europa. Desta vez, escolheram Hamburgo, para regressar ao bar dos velhos tempos. “Não conhece o Palomita, em Reeperbahn? É o melhor bar do mundo! Num lugar inesperado, onde prostitutas se cruzam com rapazes que vão de pasta para o colégio, onde velhos como nós bebem meia dúzia de cervejas e já se acham os jovens de há 30 anos, onde numa rua há uma casa de strip e na esquina a seguir há uma pastelaria e um escritório de advogados... Isto é Hamburgo, e é incrível!”, entusiasma-se. E a chuva? “Não há mau tempo quando se está devidamente vestido”, nota o londrino.
Mas a festa em Hamburgo não se confina a dias de aniversário. “Apesar da chuva constante que deu origem à expressão schietwetter (tempo de merda) para definir a mais normal das situações atmosféricas por aqui, Hamburgo é uma cidade cheia de vida, onde diferentes mundos se encontram criando quase uma realidade paralela”, explica Pedro Lopes, que vive na capital dos cruzeiros há dois anos e meio, circunstância que o faz sentir, por vezes, como “uma personagem de um filme do Fatih Akin [realizador turco-hamburguês]”. Basta olhar para os cartazes afixados nas ruas, a anunciar concertos e festivais desde Fevereiro, sem paragens.
Para se sentir essa Hamburgo multifacetada, Pedro Lopes acredita que é preciso “provar o típico fischbrotchen, beber uma Astra em Altona, ir a um jogo do Sankt Pauli, passar por Reeperbahn, mergulhar na multiculturalidade de Wilhemsburg, descobrir os típicos bares de marinheiros em St. Georg e disfrutar do barroco kitsch do bairro português [em Landungsbrücken]”. (Hamburgo é das cidades mais “portuguesas” da Alemanha, com quase 8000 imigrantes de origem lusa a viver por cá.)
Cidade de bicicletas
Mas para conhecer o sabor a esta urbe do Norte, com tudo o que o Norte quer aqui dizer — falamos também da influência escandinava no design e na arquitectura e no arrojo de edifícios como o envidraçado Dockland ou a Filarmónica de Elba (projecto polémico que custou mais de 800 milhões de euros a ser erguido) —, também é preciso correr à chuva e andar de bicicleta, o transporte que, ao fim de algumas horas por estas ruas, entra em qualquer cabeça. Susana Laurentino, que trocou Cascais por Hamburgo há pouco mais de um ano, admite que esta foi a cidade que a fez correr. “Nos últimos meses em Portugal costumava caminhar todas as manhãs uma hora. Aqui tive de passar a correr para aquecer, literalmente”, relata, aludindo às temperaturas de Inverno, que normalmente não se distanciam do grau zero.
São também a geografia plana de Hamburgo e o seu rigoroso planeamento urbanístico, voltado para as paisagens verdes, que a tornam uma cidade mouvement-friendly. “Aqui, a bicicleta faz sentido e o metro e os comboios são fantásticos. O facto de ser simples movimentarmo-nos é maravilhoso”, considera a key account manager, que aqui se sente mais próxima da natureza, da liberdade e da diversidade.
Como sugere Susana, “a cidade tem inúmeros espaços diferentes, como lagos, rios, bosques, jardins, bons restaurantes, e há sempre algo a acontecer”. “Por exemplo, no Alster, em pleno centro, há pessoas a fazer vela; no jardim Planten un Blomen, há concertos no final do dia, lugares para andar de patins e para correr; e temos ainda a oportunidade de ir ao cinema Savoy para ver um filme em inglês”, enumera a portuguesa.
Se não são pássaros que soam do ar e folhas de um verde intenso a crescer com a luz da Primavera (em Junho, o sol deita-se por volta das 22 horas e acorda pelas 4h30 da manhã), são saxofones a espreitar entre os canais e guitarras a rebentar sobre a relva. (Além da grande oferta cultural, Hamburgo é a cidade mais arborizada da Alemanha.) Nos olhos, se não pousam águas de vidro a espelhar os céus, voam ruas geométricas pintadas de cor-de-tijolo, como as de Speicherstadt (diz-se que é a maior zona do mundo de armazéns comerciais sustentados por troncos de carvalho, que aqui mergulham no Elba). Espantam, ainda, os squats a cheirar a fresco e os graffiti provocatórios dos israelitas Broken Fingaz junto aos rostos tristes pintados pelo berlinense El Bocho. Na boca, mais do que salsichas e caril, dançam pares de arenque marinado, viaja a língua em pedaços de kebab e batlava turcos, no falafel do Egipto e no arroz do Paquistão.
Mansão urbana de 1500 milionários (o que faz de Hamburgo, segundo este critério, a cidade mais rica da Europa), este é o cais de onde já ninguém quer sair à procura do destino, porque os mundos — velhos e novos — vão cabendo todos neste mesmo lugar, à medida da realidade, e na luta com ela.
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Hamburgo, entre pássaros e saxofones