Diz-se em Nova Iorque que foi Nova Iorque que inventou o Natal tal como o celebra o Ocidente, antes mesmo de Charles Dickens, na Inglaterra de meados do século XIX, ter criado o conto literário que, com o texto bíblico, sintetiza o que se convenciona chamar de espírito de Natal. O Natal dos presentes, das luzes, do banquete em família, da grande festa. O Natal branco dos postais que faz sonhar o hemisfério Sul, o Natal com importações do Norte da Europa, como as renas ou a paisagem. O Natal do sonho que se vende, se compra e se oferece centrado na figura do Santa Claus nasceu em Nova Iorque. São Nicolau é o padroeiro da cidade.
O navio holandês que chegou a Nova Amesterdão em 1773 transportava a imagem de St. Nicholas e os holandeses traziam a tradição de oferecer presentes às crianças no dia 6 de Dezembro. Com o tempo, a data juntou-se a outras celebrações: o nascimento de Jesus e o solstício de Inverno, mas São Nicolau continuou no centro da festa, menos por razões religiosas do que pagãs, numa história que se vai contando com as imprecisões e a imaginação do passe-a-palavra. Como factos temos uma cidade colonizada sobretudo por protestantes que, contudo, adoptou o santo como símbolo de uma celebração que escapava aos pressupostos da Igreja e que a literatura da época foi ajudando a fixar, sobretudo através de escritores como Washington Irving, que terá imaginado Sinterklaes — uma designação dada na Holanda a São Nicolau — a deslizar nuns esquis puxado por um cavalo e a entrar nas casas pelas chaminés, onde deixava os presentes para as crianças. O nome Santa Claus é uma alteração de Sinterklaes, que volta a aparecer num poema de Clement Clarke Moore e, pela mesma altura, um livro para crianças substituía o cavalo do Santa Claus por renas. Criava-se a narrativa de um Natal a que as elites não tardaram a aderir, seguindo o povo, e alimentada pelos comerciantes nova-iorquinos atraídos pelo negócio à volta: brinquedos, decoração, comida. E tudo associado à imagem de um santo festivo, bonacheirão, que escrevia cartas às crianças e lhes distribuía presentes. Ele era a representação do Natal americano que em 1931 se universalizou vestido de vermelho, segurando uma garrafa de Coca-Cola. O autor da ideia foi Haddon Sundblom. Era o início de uma campanha publicitátia que durou 35 anos e associou o Natal ao consumo. Há quem queira agora reverter esta imagem para restituir a de um ideal de Natal menos ostensivo. Mas este é o espírito do Natal americano, e Nova Iorque é o seu maior símbolo.
Não há Natal mais filmado, retratado, cantado, descrito, reconhecido a rivalizar com o Natal bíblico, ainda que este tivesse nascido primeiro. Nem há como fugir a clichés. Há neve a cair no teclado de um piano numa música da banda punk inglesa The Pogues. Fala de excluídos na noite de Natal numa prisão de Nova Iorque e de sonhos frustrados, de ser velho, abandonado. A voz rouca de Shane McGowen e a melódica de Kirsty McColl, os dois a percorrer a Broadway em Fairytale or New York, que em 1987, ano em que a canção foi gravada, se tornou logo num hino. Era uma alternativa quase anti-Natal, mas foi absorvida pelo Natal. Quando se tenta criar um original ele reproduz-se numa voragem, arrisca ser mainstream. Basta ter Nova Iorque e Natal na mesma “frase”. E não se estranhe ouvir Pogues entre os clássicos aqui cantados, sobretudo, por duas vozes: Frank Sinatra e Bill Crosby.