Lille, a capital do Norte
Se fechássemos os olhos e nos deixassem numa ruela do centro histórico de Lille, por momentos não teríamos a certeza se ainda estaríamos em França ou já para lá da fronteira belga, tantas são as influências de uma e de outra cultura — na arquitectura, na gastronomia, no consumo de cerveja (maior do que o de vinho), na língua. Uma sensação que voltaríamos a experienciar de forma mais inquietante em Arras, onde as fachadas que rodeiam as duas praças principais nos transportam automaticamente para o país vizinho. Mas já lá vamos.
Por agora, percorremos as ruas de paralelepípedos de Vieux Lille, com os seus edifícios de dois andares e águas-furtadas, as fachadas estreitas, muito estreitas, feitas de tijolos cor de barro ou cobertas em pedra, numa palete de pálidos e harmoniosos tons: creme, amarelo torrado, castanho, acinzentado. No piso térreo, um suceder de lojas de ar luxuoso, pastelarias, restaurantes e esplanadas, numa das principais zonas de convívio de uma cidade jovem, onde cerca de 25% da população tem menos de 25 anos (e centro do pouco turismo que a cidade ainda tem, comparada com as grandes urbes francesas).
Começamos o passeio pelo centro histórico na Rue de la Monnaie onde, como o nome deixa antever, “o dinheiro da cidade era feito quando passou para o domínio francês”, conta a guia Agnès Pascal. A região pertencia então ao Condado da Flandres, quando Luís XIV tomou a cidade e reconstruiu aquele quarteirão, instaurando regras de construção que aproximaram a arquitectura do centro histórico de Lille às influências francesas, “inventando este estilo franco-lillois”, com edifícios que terminam em linha recta e elementos escultóricos a exibir a riqueza de cada proprietário.
Junto ao chão, encontramos aqui e ali largas portadas de madeira para as caves, vestígios da Idade Média, quando aqui se concentravam as fábricas de têxteis, uma das indústrias predominantes da região. “Antes da Revolução Industrial, as pessoas viviam nessas caves em condições muito precárias, tanto que impressionaram Victor Hugo quando esteve em Lille e levaram-no a denunciá-lo em Les Châtiments”, recorda Agnès. “Un jour je descendis dans les caves de Lille / Je vis ce morne enfer. / Des fantômes sont là sous terre dans des chambres, / Blêmes, courbés, ployés; le rachis tord leurs membres / Dans son poignet de fer”
A zona, entretanto abandonada e em declínio, só foi renovada na década de 1980 e na montra de uma loja na Place aux Oignons há fotografias dos finais dos anos 1970, mostrando o recente antes de uma zona que a reabilitação e o fulgor da nomeação como Capital Europeia da Cultura em 2004 fizeram os preços dos imóveis “subirem até dez vezes mais”. Acolher aquele que é o principal evento cultural promovido pela União Europeia repôs a cidade no mapa, foi o impulso que a trouxe ao futuro, lavando a cara ao antigo e erguendo novas e modernas valências (o complexo Euralille é o exemplo incontornável). Lille reinventou-se como espaço de cultura e, mais de dez anos depois, a influência continua tão presente que é inevitável que todos nos falem disso.