A candonga que cura
Depois de uma viagem destas, de buraco em buraco, não é preciso contar o que aconteceu assim que esticamos o mosquiteiro sobre a cama. Ao outro dia, o telefone trouxe-nos Miúdo, o DJ. “Ele vende discos?” “Sim, sim. É dos únicos aqui no Lobito que ainda tem alguma música de Angola.” A loja fica a caminho do Africano, o bairro de chão de terra, do outro lado de onde vivem os flamingos. “Compão! Compão! Compão!”, grita o angariador de viajantes da janela do candongueiro, o meio de transporte a utilizar (porque não há outro no Lobito, exceptuando os táxis, caríssimos e sem carisma). Este vai para o mercado, junto às salinas, onde se vende peixe seco e kisaca (um preparo de rama de mandioca). Nós queremos o Africano.
O candongueiro — a clássica Toyota Hiace azul (ou castanha, caso seja o transporte municipal, o Voltas, que pratica metade do preço) e branca que circula a alta velocidade e não substitui o filtro do óleo há meses — é como um curandeiro: tem solução para tudo. Breve rascunho: o angariador vai empoleirado na porta de correr, com maços de notas entre os dedos e de cordas vocais afinadas para atrair passageiros; há sempre uma pequena tábua de madeira encostada à carroçaria, que serve de banco extra para o caso de chegar mais um; o rádio não falha, com o melhor da música africana dos últimos três anos, pelo menos.
Junto às kitandas (lojas), o assistente de Miúdo recebe-nos na Casa de Música do Lobito. “E vinis?”, questionamos. “O quê? Aqueles discos antigos?”, aponta para o tecto. “Isso colamos aí e nas paredes, é mais para decoração.” Se pedir ginguba (amendoins) num restaurante da ilha de Luanda é estranho — porque a lagosta é o “prato do dia” —, perguntar por vinis é um excesso. Em Angola, olhar para o século XXII, se faz favor. “De passado estamos fartos”, ouve-se o eco.
Entre cinemas, casinos, estações ferroviárias, palacetes e casarios da época colonial, poucos edifícios sofreram obras de renovação (só os que passaram a ser do Estado). Em Benguela, capital de província a cerca de 30 quilómetros (meia hora de candongueiro e 200 kwanzas por trajecto), o antigo cinema ao ar livre é onde hoje se fazem “concursos de miss, desfiles de moda, festas exclusivas”, explica o segurança. No Lobito, a caminho da Restinga (a zona fina que mantém conservada parte da presença portuguesa na arquitectura), o Tamariz exibe pouco mais do que um reclamo apagado, embora o vigilante interrompa o sono para contar que “daqui a dois anos vai voltar a abrir, com casino, pastelaria, restaurante, tudo”.
À volta, ninguém parece acreditar ou importar-se. Há uma certa apatia em relação ao mundo, condizente com o calor húmido, colado à pele. Até mesmo quanto às recentes eleições, que marcaram o momento em que José Eduardo dos Santos, Zedu, sai do trono que ocupou por 38 anos. Como observa Lélio Sousa e Santos, engenheiro civil, “o ambiente que se vive é de menor euforia do que nas primeiras eleições; as pessoas começam a habituar-se ao processo”. Ainda assim, há um país por vir. “Angola precisa de tempo para se observar a si própria, adaptar o desenvolvimento às suas necessidades e capacidades, de forma a colmatar estes contrastes gradativamente”, defende o luso-angolano.