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Angola, o paraíso encarcerado

Por Rute Barbedo

Nenhuma vida chega para compreender o país que esta semana foi a votos e continua a não fazer sentido 42 anos depois da independência. É na procura dele — e de uma fantasia que descanse de petróleo e diamantes — que as conversas dançam à mesa, ao canto da cigarra. Todos feiticeiros, todos enfeitiçados.

Senhores passageiros, vamos realizar uma paragem de cinco minutos para fazer as necessidades.” É a única pausa anunciada na viagem de autocarro entre Luanda e o Lobito, de 516 quilómetros, mais de nove horas, galinha grelhada a entrar pelas janelas e cervejas aos solavancos, até depois da meia-noite. Ninguém se dá ao luxo, portanto, de negar o básico. Todos fora do autocarro, para o meio do mato, à procura do melhor arbusto ou da rocha mais redonda. Todos menos as mulheres munidas de panos, que desenrolam uma cor de cada vez das ancas e assim dispensam biombos. Eis o primeiro ensinamento sobre a indumentária da África negra.

Agora que a única paragem do dia é passado, imaginamos a próxima deixa: “Senhores passageiros, agarrem-se ao banco da frente e contorçam as bexigas.” De casacos sobre o corpo, somos um bando de esquimós a atravessar os vales do rio Kwanza, num autocarro de vidros fumados. “Senhor motorista, está muito frio! Baixa o AC!” Ar condicionado desligado; todos a suar. Isto é Angola, país de contrastes, “magnífica e miserável”, como a descreveu Ricardo Soares de Oliveira no livro com o mesmo nome, que retrata as transformações galopantes do país, desde o contrabando de escravos ao de petróleo e diamantes. “Estado da cleptocracia”, “país do pai banana”; um paraíso encarcerado, na visão de quem o ama.

Só de Kwanza (que dá o nome à moeda nacional) são 960 quilómetros de um caudal largo, onde dançam jacarés e hipopótamos. Menos do que antes, é certo, mas ainda o suficiente para que volta e meia se chore mais uma perda no kimbo (aldeia). Se há secas e conflitos por elas neste continente, a ex-colónia portuguesa descansa a esse respeito nos seus mais de 50 cursos de água. Mas não se pode matar a sede com a que corre da torneira.

Gostávamos de poder contar carneiros, agora que as cabras e embondeiros foram dormir com o sol, mas o que está a dar por estas rectas é contar crateras. “Contrataram chineses para reconstruir as estradas [depois da guerra, terminada com a morte de Jonas Savimbi, líder do partido da oposição, a UNITA, em 2002]. Fizeram tudo sem valas! Com as chuvas, não duraram um ano”, reclama um passageiro. De cada vez que um buraco atropela o caminho, o autocarro transforma-se em bailarina. Não há corpo que aguente esta revienga (agitação, piruetas). Quanto aos olhos, ainda que no escuro, vêem de vez em quando cadáveres de camiões na berma da estrada. Mas, estando o AC regulado, ninguém se vai preocupar com isso. Pode até ser ilusão.

Era mentira, por exemplo, que iríamos parar só uma vez. Em Porto Amboim, festejamos a nona pausa. Júlia quer vender as moelas que acabou de grelhar. “É dessa capota”, explica. Para nós, capota, até ver, é o tejadilho (só mais tarde, percebemos que assim se chama a galinha-do-mato ou galinha-de-Angola). Júlia tem jeito para o comércio. A prova vai no autocarro: aroma a moela torrada a todo o comprimento.

“Vamos parar mais abaixo, na operativa”, ou seja, na estação da polícia. Se pensam que vão perceber tudo em Angola, esqueçam. Primeiro a língua viva da rua, depois a do dicionário. Um morro de musseques (favelas), maçarocas ao lume, curvas de semba e batidas de kuduro. Os edifícios dos anos 1960 e 70 começam a surgir no fim da descida, com cabos eléctricos a percorrer as paredes, vidros arejados, o zonzonar dos mosquitos. Acácias rubras pelo caminho, uma bananeira dentro de casa, a praia — que amanhã será azul — à janela. Chegamos à Restinga.

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