Huíla: um mapa de pessoas
Olhos carregados e cabeça dormente. Às nove da manhã, o polícia está bêbado e pede os documentos. Olha demoradamente a carta de condução e começa a inventar problemas na viatura. Há duas formas de agir: não ceder à pressão e jogar com a sorte ou estender umas notas pela janela. Bom, existe ainda uma terceira: mostrar que temos o padre da vila connosco no carro. “Podem seguir”, comanda o Deus-polícia.
Vamos em direcção ao Lubango, na província da Huíla. Ao primeiro gole de uma cerveja na esplanada, Amado fita-nos o olhar. Ao segundo, já partilhamos a mesma mesa. “O que querem tomar? Uma cerveja? Um whisky?” Sumo ou água não entram nas possibilidades do inspector do comércio, hotelaria e turismo da Huíla, alegre neste fim de tarde, a querer contar a vida. “Vocês sabem que eu respeito muito as mulheres, desde que vi a minha esposa a dar à luz.”
Com ar de ser o inspector mais irresponsável da História, é também um sedutor. Já nos conquistou. Desenha-nos um guia não do que conhecer mas de quem conhecer na região. “Obrigatório mesmo é o senhor Carlos, português, que tem a melhor padaria da cidade; mas também é importante conhecerem o chefe da Cultura do Lubango. Amanhã, às oito da manhã, vocês ligam-me para este número e eu apresento-vos essa gente toda”, impõe, com uma palmadinha nas costas. Aperta as mãos grandes, respira e explica-se: “Ouçam: nós já passámos tempos tenebrosos. Agora só queremos beber a nossa cervejinha.” Ainda o café da manhã não desceu ao estômago e já estamos a acordar o telefone de Amado. Chama, chama, volta a chamar. Percebemos, Amado: a noite foi longa. Vamos pelo nosso pé no encalço do senhor Carlos, português chegado a Angola em plena guerra civil para tentar singrar na vida. Adivinhem onde nos conta a aventura: à volta de uma mesa. Menu: tosta mista.
Deixou-se ficar pela capital por uns tempos, mas depois convenceram-no a abrir um negócio no Kuito. “Dormi muitas vezes no chão. Às vezes acordava a meio da noite, tudo tremia. Eram as pegadas dos hipopótamos”, recorda. O certo é que o esperado negócio sempre se consumou: “a melhor padaria da cidade”. Passa pelo seu estabelecimento toda a clientela, da vendedora de cestos aos moços de fato elegante. Moda: calça justa, sapato brilhante e pontiagudo, camisa colada ao corpo. Vão tomar cocktails aos turismos-quase-rurais da cidade, a que chamam lodges, por influência das vizinhas Namíbia e África do Sul, de onde provém grande parte dos turistas. Sim, começa a haver turismo no Lubango, tal como no Namibe, mais a sul. Vemos as primeiras fotografias na Fenda da Tundavala, onde nos leva Matias. “Daqui atiravam os presos políticos. Não se safava nenhum”, ironiza, espreitando o abismo de 1200 metros entre as rochas.
A Tundavala é o fim do mundo, para onde poderíamos atirar um avião de papel sem nunca mais o ver. Fica no topo da serra da Leba, o lugar que une um manto verde rico em pasto, pomares e agricultura à altitude zero do deserto, o do Namibe (onde cresce, única no mundo, a welwitschia mirabilis, conhecida como o polvo do deserto) a poucas dezenas de quilómetros.