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Angola, o paraíso encarcerado

Acorda-se cedo na vila de Nharea. Cedo e perto das nuvens, negras, carregadas de “aí-vem-chuva”. O padre não gosta do nome nem do frio da terra, próprio da altitude. No Planalto Central, acima dos 1500 metros, onde o milho cresce à velocidade da trovoada, cultiva-se feijão, sisal, banana, mandioca, batata-doce. Soja e arroz, dizem, é no que os asiáticos estão a investir (não chegamos a vislumbrar essa lavra; a mobilidade é limitada). Café já houve, mas “agora ninguém quer saber”, resigna-se Delfim Maurício, camisa verde e rosa, óculos de sol polidos, em cima de uma motorizada impecavelmente brilhante, a condizer com os “diamantes ao pontapé” da região.

Do final da década de 1990, em que Jonas tomava banho de balde contra esta parede pálida, até hoje, não terá mudado muito. Tentamos (re)contar mais de 40 anos de guerra na cabeça, enquanto o padre explica onde fica a cozinha, para que lado é a porta, a que horas desligam o gerador. Em Angola há duas estações — o Verão e o Cacimbo —, muito sol, bom solo e boas chuvas, o que estimula a produção agrícola e frutícola. Mesmo sem fazer muito, “as coisas nascem por aí”.

O padre conta que quase ninguém vive na vila durante a semana. Trocam as casas pelas cubatas do kimbo, e cultivam a terra assim que o sol se levanta. “As mulheres trabalham muito. Muito poucas vão para a escola”, conta Adriano. Da porta traseira, vê-se uma estrada vermelha a esticar-se para o céu. Pernas em fila sob gotas de chuva, crianças penduradas em todos os ossos, frutas de todos os tamanhos sobre a cabeça.  

Adriano convida para jantar. “Temos uma tradição. Sempre que chega um convidado especial, matamos uma galinha.” Capota (já aprendemos), de fundo preto e pintas brancas, a melhor penugem da estação. No prato, é cabidela, cozinhada no amor de Maria, uma quase-governanta. O barulho do gerador, ao longe, acompanha o serão, mas é como se fosse música de fundo para as mil e uma histórias em torno do prato que escorre. Comparada aos angolanos, que descobriram nos contos sob as estrelas a salvação do horror, Xerazade é um tímido grilo.

O jantar demora mais de duas horas, como todas as refeições neste país. Há sempre tudo para conversar, sobre tudo, e como se nada fosse terreno. “Um irmão andava a atirar no outro. Quando perceberam quem eram, largaram as armas no meio do mato e foram abraçar-se”, lembra Matias. “Uma vez atropelei um boi no caminho para o Lubango. Sabia o risco que corria e fugi durante três noites pelo mato. Quando voltei, um mês depois, tinham-me destruído o jipe”, vai o senhor Carlos. “A água tinha acabado. Estávamos em pleno [deserto do] Namibe, não havia vivalma. Veio a noite e nós perdidos. Não é que assim que o sol nasce, ao outro dia, um homem aparece nu com duas cabaças às costas?”

Esta é a melhor cabidela da eternidade, pelo que fomos dizê-lo a Maria, que está lá fora, junto à igreja pintada de branco e azul. Maria encolhe os ombros, envergonhada, e responde com o melhor sorriso da eternidade. Apetece dançar com ela. “Ukupiluka?”, diríamos, soubéssemos nós falar em umbundo. Fina, de 16 anos, tenta ensinar-nos, mas tudo o vento levou. Veio passar uns dias à missão da Nharea, também para tentar descobrir o paradeiro de um tio que cá vive. “O problema é que ele mora perto da sede da UNITA e a minha mãe disse para não ir lá de noite.” Não vai; pode dar confusão. Para o outro lado, também é melhor não ir. “Há uma exploração de diamantes e vêm muitas histórias más dali”, relata o padre. Não chegámos a vislumbrar essa lavra; a mobilidade é pouca, já o dissemos. O mundo chega até nós pela boca. Na maior parte das vezes, à volta de uma mesa.

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