Há hábitos de consumo da sociedade portuguesa que estão profundamente enraizados, e tanto assim é que nas compras para as mesas de Natal e da Páscoa haverá sempre uma garrafa de vinho generoso no rol. E, dos quatro géneros, pelo menos um: do Porto, da Madeira, de Carcavelos e Moscatel de Setúbal, desde 1908 garantidos por D. Manuel II com a garantia de tipificação como generosos. Ora, se o do Porto ganha a todos, e de longe, e como a produção das vinhas de Oeiras e Cascais é ínfima, ainda haveria vencedor seguro em caso de despique de notoriedade entre os néctares madeirense e de Setúbal. É certo que os produtores do Moscatel daquela península estão a encurtar distâncias para os demais generosos.
E mais medalhas de ouro nos concursos internacionais poderão ajudar. Mas ainda assim facilmente se sabe quem ia à mesa do rei e quem tem garantido acesso às festas dos portugueses. O Moscatel de Setúbal, da cor do âmbar, inigualável, ainda anda lento nessa disputa.
Diz-se um pouco em surdina que a produção de qualidade do Moscatel é demasiado curta, carecendo de promoção e valorização, acima de tudo dentro de portas. Todavia, da generosidade desse outro "património nacional que se bebe", assim lhe chamou David Lopes Ramos, no PÚBLICO, enraizado nas encostas da serra da Arrábida e em Palmela, ou em solos menos acidentados, até ao Montijo, refrescado pela brisa atlântica ou ainda banhado pelo Sado, é comum também dizer-se estar esquecido (ou ignorado?), mas há sinais inequívocos de que tem batalhado pela conquista definitiva da sua carta de alforria.
Como o consegue? Vai ajudando dar-se a conhecer lá fora, que é meio caminho andado. Foi também essa a estratégia de uma quase secular, mas pequena casa vinícola, que entre outros produz vinho Moscatel, a Venâncio Costa Lima, desde 1914 sediada na Quinta do Anjo. O seu fundador, a quem a autarquia de Palmela à qual também haveria de presidir, em 1937 descerrou busto e topónimo na principal rua da aldeia, não deixou descendência directa, mas à data do seu falecimento, a meio do último século, legou a empresa aos sobrinhos, empresa que não era mais que um armazém comercial de produtos agrícolas, vinho, mas também cereais e azeite.
De então para cá, o vinho passou a ser mesmo o assunto principal na sociedade, familiar, que vai brindando com Moscatel da casa, a nata da produção, pequena, é verdade, tal como a dimensão da casa. Esta é parcimoniosa, quando comparada com a dos vizinhos, nas redondezas de Azeitão, casos de José Maria da Fonseca e da Bacalhôa Vinhos de Portugal, mas de ano para ano vai-a fazendo mais orgulhosa.
Pontos nos i
Faz calor e não há visitas pela manhã, a não ser a do P2, recebido por Joana Vida, que também pertence ao clã Costa Lima, formada em Engenharia Alimentar por Agronomia e que integra o quadro de enólogos. Ela é a responsável pela qualidade do produto.
Apazigua o asfi xiante efeito do estio a entrada no espaço da adega, a original, não impressionável pelas dimensões, mas que ali mantém parte do acervo e história da casa Venâncio. Acede-se às instalações quase de forma despercebida, por um portão verde, e os trabalhos em curso indiciam transformações: a casa está a mudar, a engordar, a modernizar-se, no sector da vinificação. Mas agora convém mesmo o acolhimento naquela meia obscuridade da adega, que ameniza o estágio do vinho, para que a sua doçura e acidez encontrem o melhor equilíbrio. Há pipos novos, com a cor do carvalho ainda não marcada pela idade, os cobres para a aguardente para quem não sabia, e muita gente não o sabe, ela entra no processo do Moscatel foram limpos e brilham como se fossem originais. Há uma mesa com uma paleta de vinhos da casa, oito garrafas, talvez. Joana Vida não dá tempo para as contar. Joana só ali está há quatro anos. É neta de um dos sobrinhos do fundador Venâncio. Tem vários primos que fazem parte da sociedade, e ali ingressou após período iniciático de pós-licenciatura no Ribatejo, na casa Cadaval.