Não há vindima no Douro em que não seja evocado o nome de Dona Antónia Adelaide Ferreira. Quando um vindimador menos cioso se esquece de um cacho na videira ou deixa muitos bagos no chão, o feitor ou o proprietário lembramlhe sempre que foi "bago a bago" que a "Ferreirinha" construiu a sua fortuna e se tornou na maior viticultora do Douro do século XIX. Em boa verdade, hoje já ninguém apanha bagos. As uvas valem tão pouco que sai mais barato seguir em frente. Mas até para lembrar o "outro tempo" o nome da Dona Antónia acaba por vir à baila.
Dona Antónia converteu-se num mito, fomentando imagens formidáveis sobre o seu génio empresarial. Algumas serão algo fantasiosas, mas o fantástico legado patrimonial que deixou é indesmentível. Quando morreu, em 26 de Março de 1896, possuía uma fortuna colossal, onde, além de casas em vários lugares do país, armazéns, títulos e acções, sobressaíam mais de duas dezenas de grandes quintas no Douro.
Para os herdeiros, deixou ainda cerca de 13 mil pipas de vinhos generosos e uma garrafeira com milhares de garrafas de colheitas históricas. Muitas delas sobreviveram à erosão do tempo e chegaram ainda intactas às mãos da Sogrape, que, em 1987, fez o investimento de uma vida, ao comprar a A. A. Ferreira. E foi com seis garrafas de Porto Vintage das mais extraordinárias colheitas existentes na empresa que, no passado dia 16, na velha sala de provas da Ferreira, em Vila Nova de Gaia, a família Guedes quis celebrar o bicentenário do nascimento de Dona Antónia, numa prova rara e memorável.
Começou-se pela colheita de 1851, prosseguiu-se com as de 1830,1834,1840 e 1847 e terminouse com a de 1815, a mais antiga existente nas caves da Ferreira.
Seis vinhos pré-filoxéricos, do tempo em que no Douro ainda não havia oídio nem míldio. Só faltou mesmo a colheita de 1820, que ficou nos anais do vinho do Porto como uma das melhores do século XIX. Mas desse ano já não existe qualquer garrafa.
Em contrapartida, depois desta prova, a Sogrape ainda ficou com 50 garrafas de vinho de 1815 e algumas delas ainda vão ser bebidas pelas gerações futuras da família Guedes. Porque estes vinhos têm a rara qualidade de sobreviverem ao próprio criador.
Os vinhos legados por Dona Antónia são assim, foram feitos para durar e passar de geração em geração, "aspirando à eternidade, como toda a obra de arte da criação humana" (Gaspar Martins Pereira).
Os Vinhos
Vintage 1851
Dona Antónia tinha 40 anos quando este vinho foi feito, mas já estava à frente da A. A. Ferreira.
Enviuvara sete anos antes e, em 1847, passou a gerir o negócio, que foi crescendo sob a sua direcção. Nessa época, o vinho do Porto Vintage era engarrafado um pouco mais tarde do que é hoje. Ao fim de tanto tempo, este 1851 continua vivíssimo, com um aroma distinto e algo picante, onde sobressai algum vinagrinho e gengibre, a par de frutos secos e iodo. É um vinho muito original e exótico também na boca, com notas de rebuçado de café e mais ainda de gengibre, que proporcionam um final intenso e vivo. Extraordinário.
Vintage 1847
Um vinho de perfil mais próximo aos vintages actuais, com os toques típicos de verniz no aroma e algum floral. O mais doce dos seis vinhos que se provaram. Bastante sedoso na boca, acaba, no entanto, de forma muito fresca.