Fugas - Vinhos

  • Para a cultura do vinho ser viável, foi necessário proteger a videira das intempéries, através da construção de curraletas, parcelas pequenas delimitadas por muros de pedra.
    Para a cultura do vinho ser viável, foi necessário proteger a videira das intempéries, através da construção de curraletas, parcelas pequenas delimitadas por muros de pedra. Carlos Lopes
  • Terceira
    Terceira Daniel Rocha
  • O enólogo Anselmo Mendes
    O enólogo Anselmo Mendes Nelson Garrido

O milagre das vinhas de pedra negra dos Biscoitos

Por Pedro Garcias

O vinho Verdelho dos Biscoitos, na ilha Terceira, verdadeiro exemplo de uma viticultura heróica, nasceu com a chegada dos primeiros povoadores e expandiu-se com a aventura marítima. Quase desapareceu com a filoxera, no final do séc. XIX, mas vive agora uma segunda vida, impulsionado pela adega cooperativa local e pelo saber do enólogo minhoto Anselmo Mendes.

Só dispúnhamos de umas escassas horas para conhecer as vinhas da ilha Terceira, nos Açores, e provar o novo vinho, Muros de Magma, que Anselmo Mendes e Diogo Lopes estão a fazer na Adega Cooperativa dos Biscoitos, no concelho de Praia da Vitória. Mas Paulo Mendonça, o presidente da cooperativa, depois de nos receber no Aeroporto das Lajes, ainda encurtou mais o tempo, levando-nos a fazer algumas paragens pelo caminho. Tudo tinha um propósito, iríamos perceber ao longo do dia. Um vinho faz-se num ano, mas por trás de um grande vinho há sempre uma história ou um contexto cultural e paisagístico antigo.

Ora, para compreendermos a beleza das vinhas de pedra negra dos Biscoitos e apreciarmos como deve ser os seus formidáveis vinhos brancos feitos com a casta Verdelho temos que regressar aos alvores do povoamento dos Açores, no século XVI. Não são necessários muitos livros de história. Há alguns miradouros nas Lajes, Vila Nova e Biscoitos que nos dão uma ideia da evolução da cultura da vinha na Terceira. E na vila dos Biscoitos, situada no lado oposto de Angra do Heroísmo, a cidade-museu da Terceira, existe uma pequena ermida que nos ajuda a perceber tudo.

O edifício actual nasceu a partir de uma antiga capela mandada erigir em 1556 por Pedro Anes do Canto, fidalgo da Casa Real com olho para o negócio que acabou nomeado provedor das armadas e naus da Índia em todas as ilhas dos Açores. Após ter chegado à Terceira, foi comprando terras para abastecer de alimentos os barcos portugueses que faziam escala nos Açores a caminho da Índia. Começou por investir na zona de Angra e depois adquiriu o lugar do Porto da Cruz dos Biscoitos, onde estabeleceu a sua quinta, construindo uma grande casa, a que chamava O Galeão, e uma ermida dedicada a Nossa Senhora do Loreto. Nas zonas mais aráveis plantou pomares e, junto ao mar, em terrenos de pedra vulcânica, plantou vinhas, começando a desenhar uma das mais belas paisagens vitícolas do território nacional, semelhante à da ilha do Pico.

Pedro Anes do Canto foi decisivo na implantação da cultura da vinha na Terceira, mas pode não ter sido o pioneiro, até porque as primeiras referências ao cultivo da vinha na ilha remontam a 1503. Numa carta com data de 15 de Dezembro desse ano, Antão Martins, capitão da Praia, determina, em nome de um almoxarife, a plantação de várias culturas, entre as quais 300 bacelos em "certos biscoitos".

Biscoitos. O nome remete-nos para a doçaria. Na verdade, é essa a designação dada a um doce tradicional nos Açores feito com especiarias. Mas também é o nome que se dá à terra queimada nascida dos vulcões.

Muitas das zonas pedregosas de basalto preto situadas junto ao mar são fajãs formadas pelas lavas provenientes de erupções vulcânicas. Por serem terras pobres e de difícil granjeio, eram utilizadas para o cultivo da vinha. Para a cultura ser viável, foi necessário proteger as videiras das intempéries, através da construção de curraletas, parcelas pequenas delimitadas por muros de pedra seca. É uma arquitectura que combina sabiamente a necessidade de arrumar a pedra resultante das covas onde eram plantadas as videiras com a preocupação de proteger a vinha dos elementos. Ao crescerem entre as pedras, aproveitando as fendas existentes na camada fina de basalto, as videiras ficam protegidas dos ventos salgados do mar e vão recebendo a energia solar necessária à maturação dos cachos.

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