Fugas - Vinhos

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O Constantia regressou para celebrar o velho mundo na África do Sul

Por Rui Falcão

Poucos vinhos mundiais podem aspirar ao estatuto histórico dos Constantia, que nos séculos XVIII e XIX eram presença habitual nas casas reais europeias. Derrotados pelo oídio e pela filoxera, esses vinhos geniais regressaram em 1986 para provar que a fronteira entre o velho e o novo mundo do vinho nem sempre é consensual.

De forma mais declarada ou mais dissimulada, a maioria dos europeus assume no seu íntimo um leve assomo de superioridade em relação ao resto do mundo, uma suposta supremacia assente na história e na longa tradição europeia, na história rica e milenar, na cultura popular e erudita do vinho. Entre outros atributos gostamos de enaltecer o nosso percurso histórico que conduziu à demarcação da maioria das denominações de origem europeias. Mesmo quando nos sacrificamos a um papel mais diplomático ou politicamente correcto não conseguimos dissimular um sentimento indelével de que quando chega ao vinho os países do novo mundo continuam a ser imberbes, adolescentes e sem um registo histórico durável, produtores e regiões jovens sem biografia e sem pergaminhos.

Para além de perigosa pela prosápia inerente e pelo falso sentimento de superioridade que tal premissa acarreta, essa superioridade assenta num pressuposto profundamente falso, num erro grosseiro que urge desmistificar. Basta pensar no número muito elevado de produtores australianos que já superaram o primeiro século e meio de existência contínua, número muito superior ao inventário que Portugal pode apresentar. Mas, ainda mais devastador, basta pensar nos vinhos sul-africanos de Constantia, vinhos com mais de trezentos anos de história que já nos séculos XVIII e XIX eram profusamente considerados na elite europeia, reconhecidos e valorizados nas principais cortes, alcançando preços assombrosos como nenhuns outros vinhos da época em cidades como Londres, Paris, Berlim ou Moscovo.

Vinho de um dos países mais difíceis de enquadrar na grande ordem mundial do vinho, um país difícil de arrumar nos esquemas rigorosos com que nos habituámos a catalogar o universo do vinho. Se só com muito boa vontade poderíamos incluir a África do Sul entre os países do velho mundo, pela filosofia dominante e pelo absurdo da distância geográfica, a verdade é que a filosofia e doutrinas reinantes no país também dificilmente o enquadram no espírito dos países do novo mundo de onde se diferencia pela prática e pela história. Podemos pois dizer que a África do Sul se estabelece a meio caminho entre as tradições da velha Europa e o desassombro e a ousadia dos países do novo mundo sem se enquadrar verdadeiramente em nenhuma das duas praxis reinantes

História é coisa que não falta à África do Sul. Afinal as primeiras vinhas importadas da Europa pelos antigos colonos holandeses foram plantadas no já distante ano de 1659, em meados do século XVII, dando início a uma jornada que hoje conta com um pouco mais de 350 anos de vindimas… no extremo sul do continente africano. Quantas regiões europeias se podem vangloriar de uma história tão rica, duradoura e notável como Constantia, a pequena denominação de origem encostada à Cidade do Cabo, uma região que conta com mais de três séculos de colheitas devidamente registadas e detalhadas em inventários comerciais?

Sabe-se muito sobre os primórdios das vinhas de Constantia, sabe-se muito sobre a evolução histórica da propriedade original e da sua divisão ao longo de séculos… mas sabe-se surpreendentemente pouco sobre o vinho, sobre a forma como era elaborado, sobre as técnicas usadas e as castas usadas. Ninguém sabe como um vinho doce nascido no extremo sul do continente africano conseguiu ganhar tamanha projecção nas cortes europeias do século XVIII, chegando mesmo ao ponto de eclipsar os demais vinhos consagrados da Europa, relegando os nomes pesados para uma espécie de segunda divisão do vinho. A sua fama era tal que mesmo no exílio na remota ilha da Santa Helena, Napoleão exigiu, e conseguiu, manter o seu quinhão pessoal de trinta garrafas mensais de Vin de Constance para consumo mínimo particular.

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