Encontrar o vinho perfeito para uma refeição, criar um prato a partir de um vinho, conjugar notas de gosto, evitar que um anule o outro – habituámo-nos a ouvir falar de todas estas coisas nos bons restaurantes, vimos serem-nos propostos menus em que cada prato, da entrada à sobremesa, é conjugado com um vinho diferente, aprendemos a pôr em causa princípios que pareciam sagrados como o de que os vinhos brancos são para o peixe e os tintos para as carnes. Mas tudo isto é muito recente.
Antigamente esta “ciência” de casar vinhos com comida não existia. Geralmente os pratos regionais eram acompanhados com vinhos da respectiva região, e ponto final. Mas à medida que fomos aprofundando esta arte da conjugação fomos descobrindo nuances e subtilezas que se revelaram fascinantes. Da ideia básica de que tem que existir um equilíbrio entre a potência de um vinho e a de um prato, evoluiu-se para outros níveis de análise. O papel dos taninos é considerado muito importante. Os taninos, que estão sobretudo na pele e nas sementes das uvas, provocam uma sensação de adstringência na boca porque reagem às proteínas. Se um alimento tiver muitas proteínas, um vinho com muitos taninos pode funcionar bem, mas se não tiver, os taninos interagem com as proteínas da língua, e criam a tal sensação de secura e adstringência. E isto é algo que pode interferir com o prazer de uma refeição, por muito boa que ela seja, afectando, portanto, o trabalho de um chef.
Daí que a figura do escanção nos restaurantes tenha vindo a ganhar importância, porque é ele quem melhor pode aconselhar o vinho certo para cada prato. Além disso, é muitas vezes com ele que os chefs trabalham para elaborar novos pratos – alguns dos quais nascem mesmo a partir do desafio criado pelas notas de um vinho.
Um caso exemplar desta colaboração entre quem está mais próximo dos vinhos e quem está mais próximo da comida é o El Celler de Can Roca, o restaurante em Girona, Espanha, dos três irmãos Roca, Joan, Jordi e Josep, que actualmente ocupa o segundo lugar na lista dos melhores restaurantes do mundo (The World’s 50 Best Restaurants).
No Celler, as criações são dos três irmãos, mas cada um tem uma área de especialização, e quem mais se ocupa dos vinhos é Josep. Um dos pratos exemplares do trio é o porco ibérico com Riesling, no qual trabalharam para que os vários elementos reproduzissem de alguma forma os amoras do vinho, das trufas à beterraba, da manga ao alho. Uma complexa articulação de sabores que nasce das notas aromáticas de um vinho.
Por outro lado, é também cada vez mais habitual haver chefs a trabalhar com enólogos para criar vinhos com a sua assinatura.
Foi por estas razões que a FUGAS decidiu desafiar cinco chefs e um sommelier, em Portugal e no Brasil, a escolherem cada um três vinhos portugueses da sua eleição. Em Portugal, o convite foi feito a João Rodrigues, do Feitoria, em Lisboa, Pedro Nunes do São Gião em Guimarães, e Miguel Castro e Silva, do De Castro Flores, em Lisboa.
No Brasil, o desafio foi lançado a Tsuyoshi Murakami, o chef japonês/brasileiro do Kinoshita, em São Paulo; a Rafa Costa e Silva, que acaba de abrir o restaurante de que todos falam no Rio de Janeiro, o Lasai; e ainda ao escanção Maonel Beato do prestigiado Fasano. As escolhas são variadas e revelam a forte relação dos chefsportugueses com os vinhos nacionais e o conhecimento dos vinhos portugueses que existe entre os grandes chefs brasileiros, que em alguns casos os trabalham nas suas cozinhas, conjugando-os com os ingredientes brasileiros, e que os vão conhecendo cada vez melhor à medida que visitam Portugal e conhecem novas regiões e novos produtores, e à medida também que os vinhos portugueses vão sendo mais divulgados no Brasil.
Tsuyoshi Murakami - Kinoshita, São Paulo
Faz uns bons anos que o Kinoshita deixou o emblemático e popular bairro japonês da Liberdade, em São Paulo, para se instalar numa luxuosa e elegante vivenda da cidade desenhada pelo conhecido arquitecto Naoki Otake, na Vila Nova da Conceição. Carioca, nascido no Japão e adoptado por São Paulo, Tsuyoshi Murakami é a alma e o rosto do Kinoshita, um dos mais prestigiados e exclusivos restaurantes paulistanos. As criações de Murakami, ao estilo kappo cuisine – onde existe uma interacção entre o chefe e o comensal -, fazem a ponte entre o clássico e o contemporâneo, com espaço para a integração de elementos de outras proveniências, nomeadamente do Brasil. De igual modo, os vinhos entram na mesa do Kinoshita com a mesma naturalidade que um sake ou um chá verde. Murakami, que visitou Portugal várias vezes nos últimos anos, tem tido a oportunidade de conhecer uma boa parte dos melhores vinhos portugueses. Contudo, quando lhe lançámos este desafio, Mura, como é conhecido, centrou-se num único produtor: a Niepoort. Desta casa duriense, o chefe brasileiro começou por mostrar o seu fascínio pelo Navazos, um branco da casta palomino fino produzido em Jerez de La Fronteira, Espanha, em conjunto com o produtor local, Equipo Navazos. Murakami considera-o “inesquecível. Seco com elegância entre a vida e a morte. Subtilmente oxidado!”. Contudo, ainda que que fosse um vinho com curadoria portuguesa, o Navazos é espanhol pelo que reiterámos o pedido para que seleccionasse 3 vinhos lusos. A resposta veio rápida com o chefe a apontar um branco e dois tintos. O primeiro, foi o Redoma Reserva, um branco. “Intenso e profundo, com a alma do Charme”, um dos tintos que destacou de seguida e que descreve como sendo “charmoso, como o próprio nome”. Este vinho, bem como a sua terceira escolha, o Batuta, já foram conjugados com pratos seus e, segundo o próprio, “equilibraram as proteínas”. Para Mura, não há dúvidas: “são vinhos de muita personalidade e totalmente gastronómicos. Mudaram a minha vida”. M.P.
Restaurante Kinoshita. Rua Jacques Félix 405, Moema / Ibirapuera, São Paulo. Tel: (11) 3849-6940
Manoel Beato - Escanção do Fasano, Rio e São Paulo
Considerado o mais emblemático dos sommeliers brasileiros, Manuel Beato, gere diariamente um stock de vinhos com rótulos de fazer inveja a qualquer restaurante do mundo. A carta do Fasano é dinâmica e por isso a lista de vinhos portugueses “muda constantemente”. Beato fala de uma “terra abençoada por variedades tão ricas que elaboram vinhos bastante originais” e destaca, antes de lançar as suas três escolhas, Portos e Madeiras “antiquíssimos” da garrafeira do restaurante ou levados por clientes e que “exalam aromas que perfumam toda a sala”. Sobre o nosso desafio, a sua primeira escolha é o Abandonado, que lhe chegou pelas “próprias (e preciosas) mãos” de Domingos Alves de Sousa. Beato descreve-o como “um tinto duriense consistente, concentrado e vibrante, diferenciado de muitos durienses pelo seu sotaque mais seco, ainda maduro”.
A sua segunda indicação é o Quinta do Ribeirinho “Pé Franco” de Luís Pato. Quando o provou, “nos anos 90”, sentiu que estava a assistir ao nascimento de “uma nova obra-prima portuguesa”. Segundo Manoel Beato este vinho, “elaborado pelo grande maestro desta difícil, mas soberba casta, a Baga”, “abre um vasto leque de aromas após alguns minutos no copo”. Na prova de boca Beato refere que se trata de um vinho “sedutor e intrigante, pelo seu nervo marcante e profunda persistência”.
Por último, o sommelier do Fasano tece rasgados elogios ao Guru, a sua terceira escolha. Sobre este vinho da Wine & Soul, Beato refere que é um “branco de grandeza” e encontra-lhe “uma amplitude aromática” apenas presente “em alguns dos melhores franceses”. O brasileiro fala ainda da “textura refinadamente densa” e da complexidade de “sabores-aromas minerais, frutados, florais, vegetais e outros mais”. M.P.
Restaurante Fasano. Rua Vitório Fasano, 88 - Cerqueira César, São Paulo. Tel (+55) 11 3062 4000.
Restaurante Fasano Al Mare, Av. Vieira Souto, 80. Ipanema, Rio De Janeiro. Tel: (+55) 21 3202 4000
Rafa Costa e Silva - Lasai, Rio de Janeiro
O seu muito aguardado restaurante no Rio de Janeiro, o Lasai, acaba de abrir, e foi o meio dessa agitação (e sucesso) das primeiras semanas que o chef brasileiro Rafa Costa e Silva respondeu ao desafio da Fugas para escolher três vinhos portugueses – vinhos que, diz, “casam perfeito com as comidas típicas brasileiras, até porque muitas das tradições gastronómicas do Brasil foram trazidas pelos portugueses”.
A primeira escolha foi o Nossa Calcário (tinto e branco), um vinho da enóloga Filipa Pato “um branco de expressão, mineral, sedoso e maduro, feito à base de Bical em terroir da Bairrada” e “perfeito” para acompanhar um dos pratos do Lasai, Beijúpira com miso e cenouras frescas.
A segunda escolha de Rafa Costa e Silva é o Moscatel da Adega de Favaios, “doce, perfeito para beber antes e depois de comer”. Por fim, o chef brasileiro considera “simplesmente maravilhosos” os vinhos do Douro de Niepoort, e destaca o Batuta Tinto e o Tiara Branco.
E o que podemos fazer para que este potencial gastronómico dos vinhos portugueses seja mais conhecido no Brasil, nomeadamente entre os chefs, fundamentais para os dar a conhecer a um público mais vasto? Rafa Costa e Silva acredita que ainda há muito a fazer para aumentar esse conhecimento, e sugere que se aposte em eventos relacionados com a cultura e a história de ambos os países.
Pelo seu lado, continuará a explorar esse caminho no seu restaurante, onde apresenta diariamente dois menus, um mais curto e outro mais longo, nos quais trabalha os ingredientes da estação que lhe são fornecidos por produtores criteriosamente escolhidos. “A sua experiência vai depender do que nos oferece a terra e o mar no mesmo dia”, lê-se no site do Lasai. A.P.C.
Lasai. Rua Conde de Irajá, 191, Botafogo, Rio de Janeiro. Telf: +55 (21) 34491834/3449-1854.
João Rodrigues - Feitoria, Lisboa
João Rodrigues, chef do Feitoria (uma estrela Michelin) gosta de pensar os pratos que cria conjugando-os com vinhos – um trabalho que faz habitualmente com o escanção André Figuinha.
O chef do Feitoria gosta também de descobrir vinhos que o surpreendam. É o caso dos três que escolheu a pedido da Fugas. O primeiro é o Villa Oliveira 2011 (100% Encruzado), da Quinta da Pelada, Dão. “Achei-o fascinante porque, para além de ser um monocasta, é um branco muito atípico, com muita estrutura, que encaixa muito bem com pratos com algumas intensidade e sabores mais fortes”.
A segunda escolha é o Charme 2009, Niepoort, Douro, um vinho que conjuga “muita estrutura, notas muito terrosas, frutos secos, trufas, cogumelos” com “uma frescura e acidez notáveis”.
A terceira escolha é o Moscatel Triologia 1900/1934/1965 de José Maria da Fonseca, Setúbal – o enólogo Domingos Soares Franco fez “um blend de três lotes, cada um do seu ano, que é ideal para sobremesas mais fortes, doce de ovos com amêndoas, chocolate, caramelo com flor de sal”. Ao juntar as três melhores colheitas do século XX, Soares Franco “criou um vinho que é um pouco a história do nosso país”, afirma.
No Feitoria, João Rodrigues propõe um menu de degustação que pode ter diferentes dimensões, e ainda um menu criativo, que deve ser pedido através de reserva com 48 horas de antecedência, e onde a ideia é ficar “nas mãos do chef”. É a melhor forma de descobrir mais profundamente uma cozinha que parte dos ingredientes portugueses, mas que integra influências de outros pontos do mundo, nomeadamente da cozinha asiática – ou não fosse o restaurante, onde somos recebidos pela reprodução de um biombo Nanbam retratando a chegada dos portugueses ao Japão, também uma homenagem às viagens dos portugueses pelo mundo. A.P.C.
Feitoria - Altis Belém Hotel & Spa, Doca do Bom Sucesso, 1400-038 Lisboa. Telf:21 040 0207.
Pedro Nunes - São Gião, Guimarães
Mais que cozinheiro, Pedro Nunes é sobretudo um gourmet no mais genuíno sentido do termo. Para lá da técnica, a sua cozinha rima sobretudo com prazer e satisfação gastronómica e é assim que gosta de se apresentar. À jaqueta de chefe, prefere o blazer azul e o lencinho de seda. A pose do bon-vivant!
Fala dos vinhos pelo prazer que lhe dão, a novidade e o gosto pela diferença. “Há toneladas de vinhos bons. Portugal, felizmente, está cheio deles e com uma relação qualidade/preço que é óptima”, diz, para enunciar a sua primeira escolha: O rosé alentejano Sobro, que custa no mercado nacional menos de cinco euros.
“Acho delicioso! Cumpre aquilo que tem de cumprir, que é ser fresco. É óptimo para começar o dia!”. Dos seus pratos, frisa que o bebe “sempre, mas sempre” com o salmão braseado com molho de endro e rábano picante. “Tem notas acidificadas, fica a matar”. A segunda escolha vai para um Douro tinto, o Dona Francisca Vinhas Velhas. “Estamos a beber o 2010, que está fantástico”. Aconselha-o para a sua pá de borrego no forno. “Sem cebola”, frisa. “Apenas com alecrim, banha, água e alho. Fica crocante e vai muito bem com a juventude do vinho”, complementa.
Por último, o Grande Reserva da Quinta da Casa Amarela, também do Douro mas já mais subido no preço (45 euros). “Gosto daquele tipo de elegância, está fantástico”, acentua, associando-o à açorda de espargos selvagens e perdiz. “Tem uma acidez porreira e destaca a presença da perdiz”, diz, num tom de quase desafio e a fazer crescer a água na boca. J.A.M.
Restaurante São Gião. Rua Comendador Almeida Joaquim de Almeida Freitas, 56. 4815-270 Moreira de Cónegos – Guimarães - Tel. 253 561 853
Miguel Castro e Silva - De Castro Flores, Lisboa
Sinónimo de criatividade e modernidade, a cozinha de Miguel Castro e Silva é também sempre uma espécie de saborosa conjugação vínica. Ele próprio é responsável por primorosos blends, pelo que é com essa faceta de autoridade na matéria que logo lhe salta a escolha do Quinta da Vegia, “um daqueles vinhos que melhor mostram o espírito do Dão”. A escolha vai, naturalmente, para o Reserva, “mas também o Colheita tem muito boa aptidão para a mesa”, explica, dizendo que apesar de ter “uma particular simpatia pelo Vegia não esqueço o baga da Quinta da Pellada, que foi uma das melhores surpresas que tive”.
A segunda escolha vai para um alvarinho. Da região de Monção/Melgaço, pois claro! Trata-se do Curtimenta, do enólogo Anselmo Mendes. “Um alvarinho feito à moda antiga, em cascos usados que não deixam o rasto da madeira. Gosto sobretudo do lado mais mineral deste vinho”, destaca, notando lhe agrada também muito o Parcela Única, do mesmo enólogo: “Nem sei de qual gosto mais. Têm denominador comum, mas depois são diferentes”.
Outra das facetas que aprecia é a capacidade de envelhecimento. “O melhor que provei tinha 10 anos. Foi no confronto com um francês de Chablis e saiu-se muito bem.
A terceira escolha vai para “a nova geração de vinho do Douro”. Hesita entre Vallado e Poeira mas opta, “talvez” pelo Quinta do Crasto Reserva Vinhas Velhas. “Dá muito prazer beber. Não é um Douro demasiado brutal, vai mais pela elegância que é o que eu aprecio”, apontando-o para acompanhar um cozinhado de borrego. “Provavelmente na versão carré, que vais também mais pela elegância”, aconselha. J.A.M.
De Castro Flores. Tel. 215 903 077. Rua Marcos Portugal, 1. 1200-256 Lisboa