Fugas - Vinhos

Carlos Lopes

Tinta Negra, a revolução do Vinho da Madeira

Por Rui Falcão

O Vinho da Madeira é indubitavelmente um dos tesouros da humanidade, um dos triunfos maiores da racionalidade, um dos pináculos da civilização e sofisticação. Continua infelizmente a ser um vinho relativamente esquecido dos portugueses, madeirenses incluídos, que ainda não conseguiram descobrir as muitas virtudes que o Vinho da Madeira encerra.

São vinhos sublimes e autênticos, marcantes e por vezes desmedidos. Nenhum outro vinho se lhe pode comparar e não será difícil situá-lo entre os melhores do mundo, entre a elite internacional. 

Ao contrário da tradição secular dos vinhos nacionais que sempre assentaram na concepção do lote, na mistura de várias castas, os vinhos da Madeira sempre foram vinhos estremes, vinhos elaborados com uma só variedade. Durante muito tempo falou-se no conceito de castas nobres, variedades como o Sercial, Verdelho, Boal e Malvasia, condição que por tradição e atributo se alargou às castas extraordinárias mas hoje quase desaparecidas, Terrantez e Bastardo.

Curiosamente, e também estranhamente, num passado recente falava-se pouco da Tinta Negra, casta apresentada quase sob constrangimento, escondida dos rótulos e desmerecida para as portas traseiras da fama. Circunstância estranha quando a variedade a ter em conta na ilha da Madeira é precisamente a Tinta Negra, a casta mais plantada que sozinha representa quase quatro quintos da área total de vinha na Madeira. Mas ainda mais importante, porque ao contrário do que muitas vezes foi repetido com insistência, a Tinta Negra oferece resultados espantosos e tem tudo para se afirmar por si própria. Não pela importância económica mas sim pela qualidade dos vinhos que produz.

A verdade é que a Tinta Negra é um cavalo de batalha de personalidade camaleónica, suficientemente prestável para se acomodar a quase todos os constrangimentos de secura ou doçura, capaz de se adaptar com facilidade a todos os estilos possíveis na Madeira. Tal como o Bastardo é uma casta tinta, uma variedade de rendimentos elevados o que a torna especialmente querida pelos viticultores que apreciam a sua generosidade, simplicidade e facilidade na vinha.

Por defeito, e porque durante tantos anos foi tão desvalorizada pelos media, e também pelos produtores, de forma mais ou menos assumida, a Tinta Negra sempre foi entendida como o patinho feio da Madeira, a casta destinada aos vinhos desnaturados vendidos a granel e aos vinhos de entrada de gama, a família dos vinhos de três e cinco anos. É indiscutível que a Tinta Negra é mais que adequada e irrepreensível para estes papéis! Mas é igualmente garantido que é capaz de muito melhor, capaz de se bater com as demais variedades da ilha, de envelhecer com garbo e nobreza.

Muito provavelmente, e fugindo um pouco ao politicamente correcto, muitos dos grandes vinhos Frasqueira dos séculos XIX e início do século XX, numa altura em que a certificação ainda era relativamente frágil e onde os desastres da Filoxera, Oídio e Míldio ainda faziam sentir os seus efeitos, serão vinhos que combinam a Tinta Negra com alguma das antigamente denominadas castas nobres… ou, em alguns casos, serão vinhos inteiramente fundamentados na Tinta Negra! E raramente conseguimos descobrir um Madeira Frasqueira destas épocas que se revele francamente inferior ao esperado, o que diz muito sobre os fundamentos da casta.

Durante décadas a Tinta Negra foi tão desvalorizada que o seu nome nem podia constar nos rótulos dos vinhos da Madeira. Durante décadas a região escondeu num recanto escuro a casta fundamental e imprescindível ao Vinho da Madeira, o pilar da viticultura madeirense, diminuindo-a implicitamente com a proibição da menção do seu nome. Sabíamos que estávamos perante um Tinta Negra quando o vinho não fazia menção à casta, ou seja, dávamos pela sua presença por omissão e não por nomeação. Uma situação incompreensível quando o tempo já se tinha encarregado de demonstrar a viabilidade e probidade da variedade com dezenas de exemplares que demonstram os seus bons atributos.

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