Fugas - Vinhos

Miguel Manso

Os deliciosos dilemas do vinho para o bacalhau

Por Manuel Carvalho; Pedro Garcias

Por tradição, o bacalhau requer tinto. Mas como a tradição já não é o que era e os brancos portugueses estão muito melhores, não será pecado arriscar outras experiências. Branco ou tinto, há, no entanto, algumas regras básicas que vale a pena considerar.

O bacalhau é peixe. Não, o bacalhau é “carne”. Num país onde há dezenas de formas de confeccionar o peixe que se converteu na alma da gastronomias nacional, nada é fácil e seria ingenuidade esperar que a escolha do melhor vinho para o acompanhar fosse simples. Na sua versão mais ajustada à estação que se avizinha, estamos a falar da versão clássica do bacalhau cozido, acompanhado com batata cozida, bom azeite e couve penca – ou grelos ou até outra couve -, e de imediato temos de reconhecer que, na mesa, está um prato que não é propriamente um exemplo de intensidade para o palato, embora a patine de gordura que cria na boca exija vinhos capazes de a penetrar. Mas, colocada a equação nos seus temos mais básicos, que vinho escolher? Um branco ou um tinto? Um branco com madeira ou mais baseado na juventude e na fruta? Um tinto delicado e polido ou um exemplar mais raçudo, com mais tanino e fulgor aromático?

Por norma e tradição, o bacalhau é para muita gente, talvez a maioria, um peixe que recomenda tintos. O seu corpo untuoso ou a exigência do sal implicam um vinho estruturado, mais quente e menos frutado. Mas a legião dos fiéis que defendem o recurso ao branco. Afinal, o paladar do bacalhau recomenda um vinho mais fresco e capaz de aliviar os sentidos da sua assertividade na boca. Onde ficamos? Algures entre as duas constatações, ou para os militantes, entre as duas verdades há possibilidades de escolha que, dependendo da subjectividade dos gostos de cada um (a única condição inquestionável em tudo o que diz respeito aos vinhos), fazem sentido. Mas para isso, temos de procurar o estilo de branco ou de tinto que melhor se ajusta ao problema.

Em primeiro lugar, e quanto aos tintos, convém ter em consideração que o bacalhau com azeite e batata não é propriamente uma feijoada, uma carne vermelha grelhada (tipo picanha) ou um assado de porco. Concordemos que é, afinal, um prato de sabores mais contidos, delicados e sofisticados. Logo, é de bom tom procurar um vinho tinto que se harmonize bem com estes predicados. Ou seja, é conveniente excluir das escolhas vinhos tintos com tanino vigoroso, seco ou vegetal, daqueles que pela natureza ou pela juventude nos causam alguma adstringência na boca. E, da mesma forma, não é boa ideia optar por um vinho jovem e muito extraído – com grande volume de boca, fruta intensa e com uma agressividade própria dos vinhos novos e obedientes a um uma enologia que privilegia o impacte à subtileza.

Para evitar erros, é boa ideia ir à garrafeira e tentar encontrar um vinho tinto já com alguns anos de envelhecimento. Aí entre 2005 e 2010, se tivermos em consideração um Douro ou um Dão, de preferência mais antigos se for um bairradino com a têmpera da Baga. Mas, se não tiver garrafeira, não desista. No mercado há vinhos bem mais recentes e que ficam muito bem na mesa do bacalhau. Não faltam Alentejanos jovens e mais vetustos, um ou outro vinho de Lisboa ou até a nova geração de transmontanos que se começam impor pela sua enorme frescura e vocação gastronómica – ou outros assim não tão jovens, como o Vale Pradinhos, cujas edições de 2011 e 2012 ainda se encontram no mercado e se ajustam muito bem à ocasião. O que se deve ter essencialmente em consideração é a noção de que, para a grande noite do bacalhau, não é boa ideia escolher o mesmo tinto que se escolheria para o assado ou o grelhado do costume.

E depois, se em vez de um tinto for um branco? Há juízos feitos sobre o tinto que se podem aplicar aos brancos. Por exemplo, o de pôr de lado qualquer tentativa de pensar num vinho marcado pela potência aromática da sua fruta jovem e ainda menos pela sua doçura. Sobram ainda assim muitas opções. A começar a dos brancos com madeira, principalmente a nova geração de vinhos fermentados em barrica e sujeitos a estágios com contacto do vinho com as borras finas. Vinhos com corpo suficiente para romper a patine do azeite e do bacalhau, com complexidade para uma harmonização e, de preferência, mais inspirados numa fruta controlada mas existente do que na ditadura da madeira. Há, felizmente, cada vez mais vinhos assim.

Aqui e ali, talvez com mais predominância na Bairrada, há vinhos jovens sem madeira que, pela natureza da região ou pelas castas que emprega, ficam bem no diálogo com o bacalhau. São, por natureza, vinhos mais secos ou com um volume de boca mais exigente. Há também vinhos secos que nos chegam do Pico que se ajustam na perfeição ao desafio. E há, claro, boas escolhas entre os brancos produzidos a partir das nossas três grandes castas brancas: a Arinto, a Encruzado e a Alvarinho. Nesta casta, vale a pena manter os padrões de sempre e experimentar vinhos com mais mineralidade e menos fruta jovem. Mas a Encruzado é talvez a casta que melhor se adapta ao jogo com o prato nobre do Natal. Porque os seus vinhos têm peso e estrutura suficiente para a relação; porque têm uma acidez geralmente muito bem balanceada; e porque são por regra contidos na sua exuberância aromática.

Então se tivermos em mãos um Encruzado com uns anos de garrafa (por exemplo, um Quinta de Carvalhais de 2007 ou 2008), chegaremos ao melhor dos mundos. Não o tendo, nem tendo vinhos velhos, nem vinhos muito caros, não é caso para desesperar. Talvez seja mais fácil encontrar o bom bacalhau e arte para o demolhar como deve ser do que ir a uma garrafeira ou a um supermercado nas imediações e encontrar um vinho à altura. Bacalhau carne ou peixe, com branco ou tinto? Com dilemas destes até é bom lidar.

Quinta da Gaivosa 2011
Quinta da Gaivosa
Preço: 34,90€
Sabe-se que a Gaivosa faz grandes vinhos nos anos vintage e 2011 não é excepção. Este Gaivosa é um vinho que irradia impressões balsâmicas (caruma, aromas de bosque), fruta preta elegante e sofisticada, onde tudo parece situar-se em proporções perfeitas. A origem em vinhas com mais de 80 anos, onde dominam as castas Touriga Franca, Touriga Nacional e Tinto Cão, confere-lhe elegância, profundidade e grandeza e a altitude e exposição garantem-lhe uma notável graça e frescura natural. O seu recorte e a sua fineza garantem uma relação óptima com o prato maior da noite de Natal. M.C.  

Zagalos Reserva 2010
Miguel Louro, Estremoz
Preço: 12,50€
Ao seu quinto ano de vida, este vinho conserva uma magnífica carga aromática, tanino vivo e uma acidez vibrante. Mas a segunda marca da casa de Miguel Louro é desde já uma proposta tentadora. Sedutor na expressão de fruta madura, algum fumado temperado por notas vegetais, tenso pela natureza dos seus taninos, fresco pela boa acidez no final de boca, é um belíssimo vinho, com uma delicadeza aromática e um veludo na boca que se ajustam na perfeição ao bacalhau. E está à venda por um preço muitíssimo razoável para um espécimen desta complexidade e gabarito. M.C.   

Vila Santa Reserva 2013
João Portugal Ramos, Estremoz, Alentejo
Preço: 10€
Não é preciso gastar muito dinheiro para se chegar a um óptimo vinho. Acontece com este Vila Santa, alentejano da região fina de Estremoz. É impossível não gostar deste vinho. Pela complexidade do seu aroma, com propostas de fruta madura, especiaria e boas notas de madeira (passou nove meses em barricas de carvalho francês e americano), mas principalmente pela sua fineza na boca. Não é um vinho mole (longe disso), mas não é um vinho bruto, com fruta opulenta ou tanino vegetal para assoberbar o bacalhau. O que distingue este vinho é pelo contrário a harmonia e o perfil sofisticado de prazer que proporciona. M.C.  

Regueiro Primitivo 2014
Quinta do Regueiro, Melgaço, Vinhos Verdes
Preço: 13€
Um Alvarinho com a garra de uma vinha velha e já com um par de anos de garrafa é sempre um belo desafio para o bacalhau e o azeite. Principalmente quando, como é o caso, em causa está um Alvarinho com as impressões digitais da casta mas com uma expressão de fruta distinta, mais contida, e uma acidez tensa que o tornam mais másculo do que o habitual. Ou seja, é um vinho com alma. Ou com complexidade, se preferirem. No nariz, mostra aroma de polpa de maçã, notas tropicais, sugestões de pêssego e fumo, num conjunto muito atractivo e sedutor. Volumoso, com uma acidez cítrica no final de boca a equilibrar a sua sedosidade e volume, é um branco que marca o palato, confirmando a sua excelente aptidão gastronómica. M.C.   

Morgado de Silgueiros, Encruzado 2015
Adega Cooperativa de Silgueiros, Dão
Preço: 4,20€
Aroma de maçã ácida, presença ténue da barrica que ainda assim confere sofisticação e densidade ao nariz. Um branco sedoso, muito intenso e fresco, gordo sem ser cansativo, tenso sem ser agressivo é um primor no balanço, uma obra notável na persistência e uma delícia no final de prova, quando a fruta assertiva se tempera com notas resinosas da barrica. Um daqueles vinhos que exige comida, como se recomenda aos grandes vinhos. Um belíssimo branco, gastronómico, vivaz e com graça, que ficará muito bem com o bacalhau e tem até garra para o final do jantar, quando à mesa chegar a indispensável tábua de queijos. Uma excelente proposta a um preço muito apetecível. Um exemplo de um Encruzado do Dão bem trabalhado, do qual vale a pena adquirir algumas garrafas e esperar pelo seu envelhecimento. M.C.   

2221 Terroir
Cantanhede 2011
Adega Cooperativa de Cantanhede/Caves S. João, Bairrada
Preço: 42,90€ (em domvinho.com)
Uma grande co-produção da Adega de Cantanhede e das Caves S. João, ou se preferirem dos enólogos José Carvalheira e de Osvaldo Amado só podia dar no que deu: num grande vinho. Aromas de fruta vermelha madura, notas balsâmicas, sugestões de especiaria configuram um nariz atraente e muito delicado. Na boca mostra uma estrutura poderosa, com tanino preciso, firme mas elegante, uma sedutora textura, uma harmonia notável e um final delicioso. Um Bairrada de estirpe superior, muito gastronómico, que se bebe já bem mas que ainda tem uma longa vida na garrafa. Uma proposta mais musculada para o prato de Natal, mas nem por isso de menor gabarito. Pelo contrário, o equilíbrio entre a finesse e a pujança deste vinho garantem uma harmonia inabalável. M.C.   

Quinta de San Joanne Escolha 2014
Casa de Cello, Amarante, Vinhos Verdes
Preço: 11,80€
Lote de Alvarinho Avesso, Arinto e Trajadura. Um branco de grande pureza e precisão. Era destes vinhos “seivosos” que Eça de Queirós falava, com apreço, no seu “A cidade e as serras”. Vinhos cheios de viço e frescura, ideais para cortar os excessos de açúcar e gordura do Natal.  Ressuma a citrinos, fruta branca, flores, envolvendo bem a boca com sensações ácidas, especiadas e ligeiramente amargas (gengibre, maçã reineta, toranja). Uma delícia. P.G.

Quinta dos Carvalhais Reserva Tinto 2011
Sogrape, Mangualde, Dão
Preço: 27,50€
Um grande tinto do Dão a um preço nada proibitivo. No primeiro contacto, parece até um pouco austero, mas quando o provámos ficamos rendidos. É um daqueles vinhos que lembram atletas enxutos mas de grande pegada. Possui o melhor do Dão: frescura balsâmica, elegância, finesse e sapidez. Tudo sem ser ligeiro. E tem a vantagem de ser muito plástico, podendo acompanhar bem tanto o bacalhau como o perú ou o polvo. P.G.

Quinta dos Murças Margem Tinto 2015
Quinta dos Murças, Covelinhas, Douro
Preço: 30€
Uma estreia  recente da Quinta dos Murças, o braço duriense da Herdade do Esporão. Um tinto de gama alta que é lançado muito jovem no mercado, procurando emular a tendência dos Porto Vintage, que saem cada vez mais afinados e elegantes, para poderem ser consumidos mais cedo. O vinho é de 2015, mas não tem ponta de rusticidade. Sendo um Douro com boa robustez, está muito elegante e apelativo, com fruta muito sumarenta e um bom compromisso entre a acidez e o álcool. Como só passou por barricas usadas, não está marcado pela barrica. Digestivo e guloso, pode fazer um brilharete junto dos familiares menos conhecedores de vinho. P.G.

Cortes de Cima Reserva Tinto 2011
Cortes de Cima, Vidigueira, Alentejo
Preço: 65€
O ano de 2011 foi muito bom um pouco por todo o país. No Alentejo, foi mesmo memorável. O mais recente Cortes de Cima Reserva, que acaba de sair, é provavelmente um dos melhores de sempre deste produtor. Em prova cega com outros quatro tintos de valia semelhante enganou-nos bem, ao ponto de lhe termos vislumbrado um certo perfil Bairrada, tal é o seu vigor tânico e frescura. É um vinho que alia uma acidez e uma frescura vegetal pouco comuns para o Alentejo a uma componente frutada muito apelativa e saborosa e a uma grande solidez tânica, o que se explica pela junção no lote de castas tão antagónicas como o Aragonez, o Petit Verdot, a Touriga Nacional e a Syrah. Está muito bem feito e é difícil ficar-lhe indiferente. Não é barato, mas, como tem acontecido com as colheitas anteriores, as 9900 garrafas que foram produzidos deverão esgotar rapidamente, tal é o culto existente em torno deste vinho. P.G.

Quinta de Arcossó Branco Reserva 2015
Quinta de Arcossó, Vidago, Trás-os-Montes
Preço: 11€
Os vinhos da Quinta de Arcossó, junto a Vidago, são um dos segredos melhor (ou pior) guardados do país vinhateiro. Não têm grande notoriedade junto do grande público, mas são esplêndidos. Originários de solos graníticos com alguma argila à mistura, são vinhos fresquíssimos e harmoniosos. Os tintos têm um pouco de Douro (no volume e estrutura de taninos) e de Dão (na frescura e elegância). Os brancos remetem mais para a Bairrada e os Vinhos Verdes, tal é o seu frescor. Mas isto só nas semelhanças, porque os vinhos de Arcossó são verdadeiramente vinhos de “terroir”, feitos sem maquilhagens e unicamente tributários da cultura e da natureza locais. O Reserva Branco 2015, por exemplo, é um vinho de grande pureza e frescura. Feito de Arinto, Alvarinho, Cerceal e um pouco de vinha velha, é muito fino e exaltante no aroma e explosivo e vigoroso na boca. A sua juventude e a sua extraordinária acidez podem ser um bálsamo na mesa de Natal.  P.G.

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