É toda uma sinfonia: o canto dos grilos, as ondas do mar a rebentar ao longe, a música do baile da aldeia e as folhas das árvores a dançar. Está vento, dizem que é o Levante, esse velho africano vindo do Sara que atravessa o estreito de Gibraltar e aquece o Algarve. Apetece-nos descalçar, saltar para a rede de lona instalada à frente do quarto e pedir que nos embalem, enquanto vemos as estrelas. E de repente, um rasgo de luz no céu, tão veloz que mal o vimos. Pedir um desejo, agora? Ficar aqui só mais um bocadinho.
As portas da Casa Modesta abriram no Dia das Mentiras, 1 de Abril, mas não há aqui enganos. O nome é honesto: este é um espaço de coisas simples, artesanais e autênticas, sem luxos mas confortável, acolhedor e recheado de memórias, não fosse esta uma casa de família que atravessou gerações. Localizada em Quatrim do Sul, no concelho de Olhão, longe do reboliço das praias algarvias e com a ria Formosa aos pés, a Casa Modesta é um refúgio de verdade.
Aquela foi em tempos a casa da avó Carminda e do avô Joaquim Modesto de Brito, um “lobo-do-mar”, “Campeão” para os amigos. Os netos – Vânia Brito Fernandes e Carlos Fernandes –, que ali cresceram e brincaram à sombra do eucalipto no quintal, herdaram o lugar e deitaram mãos à obra. Quiseram recuperar a alma da casa (que inclui a habitação principal e um antigo espaço de arrumos), entretanto perdida em obras avulso, e manter a arquitectura típica de Olhão: edifícios em forma de cubo, paredes brancas e terraços de vistas largas (açoteias, no dialecto algarvio), de inspiração árabe, onde antigamente se secava a fruta e o peixe. A isto juntaram bom gosto e produtos locais. Nasceu assim o protótipo da casa chã.
Chã, porque é do chão, da terra, do que é autêntico. Vânia explica o conceito, registado pela Plataforma de Arquitectura (PAr), atelier do qual é co-fundadora: “É uma arquitectura simples e pura, com toques de poesia e não tanto de luxo.” Não encontramos uma definição melhor.
O tradicional e o contemporâneo juntam-se nos detalhes. Nas cortinas que lembram redes de pesca, no mobiliário de cortiça com design moderno, na loiça em cerâmica feita nas olarias locais, nos potes de barro forrados a croché colorido, no bioco (o trajo típico do Algarve que se usou até ao século XIX, preto, inspirado nas burqas árabes) reinventado com materiais diversos (como renda e croché) e múltiplas cores.
A Casa Modesta tem nove quartos (um deles adaptado a pessoas com mobilidade reduzida) com pátios e terraços privados, sobranceiros à ria. Não há televisão, as camas são de madeira, as paredes brancas. O guarda-fatos e uma porta deslizante dividem a zona de dormir da zona de banho, onde o chuveiro largo e a banheira escavada no chão de tijolo convidam a banhos demorados. Mas em dias de calor é melhor ir para a rua e mergulhar no tanque instalado no quintal (óptimo para brincadeiras com as crianças, uma vez que é pouco fundo).
Voltemos aos desejos, daqueles que só se realizam à mesa. Porque Algarve é sinónimo de alfarroba, de laranjas sumarentas e de figos amadurecidos ao sol. Lá estão eles ao pequeno-almoço, ao lado dos morangos e framboesas acabados de colher na horta biológica, do leite, dos iogurtes naturais e do queijo fresco produzidos na região.
A sala de refeições tem uma grande mesa de madeira e bancos corridos que convidam a jantares e almoços demorados, regados por um bom vinho algarvio. E, apesar de não ter cozinheiros residentes, na Casa Modesta ninguém passa fome. Vânia e Carlos olharam à volta e encontraram nos amigos – e até na avó Carminda, que fez um arroz de pato divinal para o almoço de domingo – os melhores parceiros gastronómicos para satisfazer os hóspedes que preferem comer em casa. É só pedir.
No espaço onde a avó cozia o pão – o forno a lenha ainda lá está – e o avô Joaquim guardava as amêijoas apanhadas na ria, a dupla Algarve Cooking (Sandra e Rolando, dois professores apaixonados pela cozinha) prepara iguarias de comer e chorar por mais: a começar nas tapas de cavala pinceladas com pickles de salicórnia (erva algarvia), passando pela cataplana de amêijoas e acabando na tarte de alfarroba e figos. Água na boca? Calma, há mais. Temos que guardar espaço para os pintxos do Mezzanine, um bar e vinoteca que também serve refeições, em Faro. O chef vai à Casa Modesta preparar o lingueirão panado, as tapas de anchovas e de salmão e o delicioso morno (lombo) de atum, fresco, como não podia deixar de ser.
Quase juramos que o tempo em Quatrim do Sul passa mais devagar. Senão, como explicávamos as longas horas passadas a comer à volta da mesa grande, literalmente como se não houvesse amanhã? No sábado à noite, foi o sushi que nos prendeu ao banco – depois de nos ter colado à banca da cozinha, onde durante um par de horas tentámos merecer o jantar numa pequena aula sobre a técnica japonesa de enrolar arroz em algas. Preferimos os rolos do mestre: Tiago Santos trocou o tradicional salmão por peixes que se encontram na região, como o sarrajão, o robalo, a dourada, a cavala e a corvina, e criou o sushi da ria. Afinal, mais difícil do que enrolar o sushi correctamente, é parar de o comer.
O melhor da noite, porém, está a cinco minutos a pé da Casa Modesta, para lá dos canaviais. Em noites de festa, o ringue desportivo de Bias do Sul transforma-se em salão de baile. Aos comandos, o Grupo Musical Blue Star: Yolanda Micaela na voz, Luís Pacheco no órgão. Chegámos tarde, já só temos direito a três músicas, dois pés de dança (exercício perfeito depois de tanto sushi) e umas faixas extra cantadas pela Yolanda, a capella com fundo de beat box. Convidam-nos para voltar outro dia. Voltávamos já amanhã.
A Fugas esteve alojada a convite da Casa Modesta
- Nome
- Casa Modesta
- Local
- Olhão, Olhão, Quatrim do Sul
- Telefone
- 289701096
- Website
- http://www.casamodesta.pt/