Na Estrada Nacional 125, em Conceição de Tavira, há uma placa pequena junto às outras a apontar para a esquerda. Diz “Pensão Agrícola”, e porque o nome é bonito, viramos. A ansiedade faz o caminho longo – ela, as alfarrobeiras, os olivais, a dúzia de vacas luzidias, o aroma a figueira, o não vermos ninguém. Não soubéssemos nós que o mar era já ali e esta paisagem onde apenas as folhas mexem com o vento poderia muito bem ser uma das nossas beiras, seca, acamada em terra dourada, com a serra do Caldeirão ao fundo a guardar javalis e rosmaninho.
Foi dali a escassos metros, a contar da vigésima sexta amendoeira, que conhecemos Rui Liberato de Sousa, o homem que gosta de preservar coisas preciosas, como este Algarve que enche os pulmões de perfume, outrora mel para os mouros e que entretanto se pôs baldio, com ruínas à espera de serem um dia casas como já foram. Foi esse o destino feliz da Pensão Agrícola, encontrada em 2010 ainda sem nome nem vida, por Rui Liberato de Sousa e Nuno Ramos – um engenheiro civil, o outro médico – e aberta ao público desde Julho. Em quatro anos de “luta” – porque eram muitos os que defendiam demolir para começar tudo de novo em vez de reabilitar –, com a ajuda do Atelier Rua; do arquitecto paisagista Maurice Levy; do design dos Playground; e do perfumista Lourenço Lucena, levantaram o lugar das cinzas para torná-lo “um espaço que faça as pessoas felizes”, assume Rui, no sofá da sala.
“Quando cá chegámos isto era uma autêntica ruína”, conta o anfitrião, enquanto mostra fotografias de paredes complicadas (erguidas em 1920), móveis cobertos de pó e teias de aranha, livros, louças, tudo o que uma família pode acumular no decorrer de uma vida. Mas não havia história para estes objectos, por desconhecimento dos herdeiros da quinta. Havia, sim, “uma série de marcos no terreno com as iniciais MSG”, que passaram a entoar persistentemente na cabeça de Rui. “Tentei perceber o que era isto. Fui ao cemitério da Conceição e vi lá o nome de um Manuel da Silva Gomes, que oferecia o jazigo à esposa, Rita Cabanas.” A partir daí, ligando registos e relatos, começaram a juntar-se peças, para que o lugar se recompusesse sem ficção e prosseguisse o seu caminho. O que se sabe, com mais ou menos detalhe, é que MSG era construtor civil em Beja e Rita Cabanas era proprietária rural, uma família rica que depois do casamento terá assentado vida nesta típica casa algarvia, entre a formosa Tavira e a poética Cacela Velha.
O Barrocal pelas paredes
O trabalho integrado do Atelier Rua, que investigou a arquitectura tradicional da região e quis aqui vincá-la, assentou o desenho num “léxico puro e básico” e num conceito em que “só o essencial é necessário”, como explica o projectista Luís Valente. Formou-se, então, a branca Pensão Agrícola: seis quartos com pátios privativos (metade na casa central e os restantes em módulos independentes), uma piscina, a cozinha, a sala, um pátio para refeições, o espaço em volta para deambular, apanhar amêndoas, morder laranjas. “A ideia foi, com o mínimo de alterações tipológicas, tentar recuperar o máximo do espaço original, porque era um lugar com uma identidade tão forte, apesar de se encontrar em tão mau estado”, contextualiza o arquitecto. E sempre foi esta a ideia dos mentores do projecto: preservar, reabilitar, valorizar.
Em volta, as árvores são como centros de mesa (foi, aliás, pelo espaço agrícola que começou a desenhar-se a pensão). Come-se orgânico e os sabonetes são da terra (com azeite e aroma a laranjeira e, em alguns casos, esfoliante de cortiça). No céu, há estrelas perenes e cadentes. Do chão, nascem molhos carnudos de manjericão, alecrim e sabugueiro.
Cada quarto da Pensão Agrícola tem um nome. Nós temos na mão a chave, grande, da Suíte do Curral, que fica do lado onde nasce o sol, junto a uma fonte decorativa do pátio central. (A fonte entrou-nos na cama durante a noite e sonhámos com água.) Seja no Curral, no Páteo, na Açoteia, no Muro, na Chaminé ou no Armazém, há sempre bons livros para ler (e também revistas e livros assim-assim, como é necessário). A sensação é de estarmos numa cabana de paredes maciças, onde se elogia o cimento polido e nos cobre um tecto falso em cana algarvia.
Na nossa cabeceira, Proust gasta 20 páginas a falar das voltas e voltas na cama. Começa assim: “Durante muito tempo fui para a cama cedo. Por vezes, mal apagava a vela, os olhos fechavam-se tão depressa que não tinha tempo de pensar ‘Vou adormecer’.” Mas nesta suíte, embora o colchão seja macio e os lençóis de alecrim, não apetece dormir. Somos camaleões, com um olho para cada lado, a espreitar os pormenores que rebentam como um caleidoscópio no quarto. Ponderamos, inclusive, passar a noite a brincar com o fio curto preso ao candeeiro de parede, ao lado da cama, a fazer e a desfazer a luz. Espreitamos o guia de sugestões da pensão – praias e restaurantes das redondezas, como A Noélia, em Cabanas, onde “tudo é bom”, ou a praia do Lacém, deserta. Acendemos a vela para continuar a odisseia proustiana Em busca do tempo perdido, coisa que os pensadores deste lugar nunca sentiram acontecer durante a sua criação. Como afirma Rui, “tudo precisa de tempo para que se chegue perto da perfeição”. E insiste: “Tempo…”
Quando acordamos, com o tempo do barrocal algarvio e as ervas secas, cheiramos nós a alecrim. A dona Bárbara oferece café, o que vem lembrar-nos que não fará tão mal assim acordar mais um pouco. Conta que chegou a brincar nesta casa, “quando ainda cá viviam os caseiros”, era ela “miúda”. Pergunta se queremos “torradinhas”. A mesa é farta. Desconfiamos que o estômago descansado no quarto-cabana tradicional-contemporâneo, já depois de um curto jejum a experimentar a água do tanque branco, não será suficientemente bravo para aconchegar todas as peças. Mas é preciso um esforço. Vamos lá.
A tosta de Brie e manjericão, o croissant folhado, o pão de alfarroba com queijo fresco de Tavira e compota de pêra caseira, figos e uvas, o sumo de laranja, o café, o iogurte com granola, o sumo outra vez, sem ordem possível, atropelam-se no pensamento de se querer saber tudo, provar tudo, registar a gula na ponta da língua. Mais uma torradinha. Vamos lá, com tempo. Tudo é caseiro. Já passou mais de uma hora, e ainda vem o bolo de cenoura com cobertura de chocolate. Não tarda, chegam o requeijão, o pêssego da época, as abelhas a roubar-nos a obsessão do momento. Como afugentá-las tornou-se o tema da manhã, entre mesas. Café moído, de preferência queimado no álcool do vodka, sugerem os polacos. Haja café. Elas voltam. Acordamos. O passatempo é a natureza. “Está tudo bem? Quer comer mais alguma coisa?” Levamos as mãos à barriga. Tem avonde [já chega], como se diz por estas bandas. Respeitemos o mergulho que virá a seguir. E o tempo, o outro, que faz sol eternamente.
A Fugas esteve alojada a convite da Pensão Agrícola
- Nome
- Pensão Agrícola
- Local
- Tavira, Conceição, Sítio do Valongo
- Telefone
- 917782189
- Website
- http://www.pensaoagricola.com/