Fugas - prazeresdeverao

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O Douro na linha

Por Andreia Marques Pereira

Não é o ritmo de pouca-terra-pouca-terra mas está longe das velocidades actuais. Está, sim, perto do Douro, o rio, e em pleno Douro. Sobre carris, em comboio vintage q.b., revela-se outra forma de ver o Alto Douro Vinhateiro – com um pé na história ferroviária e outro no cancioneiro regional.

O comboio já está atrasado mas ninguém parece preocupado. Brinca-se com o atraso: “Mas quando é que um comboio sai atrasado?”, ironiza alguém. É que numa altura em que se busca a velocidade máxima, quem viaja neste comboio sabe que a (relativa) lentidão é velocidade máxima. E, na verdade, todos parecem estar ocupados, disparando fotos do comboio, da plataforma — e não faltam os selfie sticks a saírem das janelas. O Grupo de Cantares Regionais de Fornelos, em trajes típicos (elas de saia comprida, blusa larga, meia branca, chinelo e lenço na cabeça; eles de calça, camisa e colete — chapéu opcional) já desfila, incansável, pela plataforma, vozes, cavaquinhos, pandeiretas, ferrinhos, bombo, acordeão, a entoar “nas voltinhas do Marão, ai as voltas que eu fui dar, ai ai ai encontrei com quem casar...”, com uma vendedora dos célebres rebuçados da Régua a liderar o cortejo.

E, entretanto, ainda há quem tente arranjar lugar no comboio iludindo a casa de partida, que é como quem diz, a bilheteira, onde nos dizem que o comboio está esgotado “e já 50 pessoas foram para trás”. “Olhe, aquelas duas meninas também queriam”, apontam-nos. A família holandesa que esperava pacientemente desistências teve mais sorte: a insistência da guia que a acompanha, já na plataforma, acaba por valer-lhes lugares.

Este tipo de azáfama na estação da Régua já é habitual durante o Verão, quando o comboio histórico do Douro faz as suas viagens até ao Tua e regressa, sempre com paragens no Pinhão. Este ano a temporada começou em Junho e vai até final de Outubro, sendo que desde meados de Agosto tem dose dupla, ou seja, às saídas ao sábado juntam-se as ao domingo. É sábado e o espectáculo habitual está montado, à margem do serviço normal da CP — e à margem de locomotivas e carruagens abandonadas, uma imagem que veremos repetida.

Afinal, longe vão os tempos áureos da Linha do Douro, construída entre 1875 e 1887, no que foi um esforço de engenharia notável dada a caprichosa geografia do território — os mesmos caprichos que o tornaram mais de um século depois Património Mundial da UNESCO e que em grande parte justificam estas viagens com cheiro a passado. Ainda que não totalmente. As carruagens, cinco, são do início do século XX, mas a locomotiva não é a vapor, é a diesel, de 1967. “A locomotiva puxada a diesel não se coaduna com isto”, há-de criticar Jorge Franco, 58 anos, vindo de Tomar, “e o revisor devia estar vestido à época”.

Não que não goste da experiência e que não tenha viajado no tempo, ele que até “ia num [comboio] destes para a escola”: na estação do Pinhão confessa que a animação é boa, “liberta as pessoas”, e “o comboio é bonito”; mas ele é “amante de comboios”, já viajou noutras composições históricas, na Suíça, e leu sobre o que se faz em países como os EUA. “Quanto mais genuíno, mais pessoas vêm. Há quem viaje só por isto. E já viu que há muitos estrangeiros?”

Rebuçados e Malhão

Voltamos ao início, à partida da Régua, e soltam-se mais ironias à custa da vetustez das carruagens. “Isto hoje está quentinho. Alguém ligou o ar condicionado?” Janelas abertas logo à partida: primeiro o apito, depois o solavanco e lá vamos nós, por este Douro acima, com este Douro ao lado. Do lado direito do comboio, mais precisamente, na margem direita do Douro. Primeiro as três pontes da Régua, depois o rio a parecer impossivelmente estreito para o sobe e desce de barcos turísticos — literal já aqui à frente, na barragem de Bagaúste, com as eclusas a ajudá-los a ultrapassar o desnível.

O primeiro dos dois túneis deste percurso mergulha-nos na escuridão e há quem se instale já sem sapatilhas e meias e quem tome novos lugares, nas “varandas” das extremidades das carruagens, as duas primeiras verdes, a corresponderem às antigas primeira e segunda classes, as três últimas de madeira. Mas, e já nos tinham avisado, o vaivém é o lugar mais constante da maioria dos passageiros do comboio — para ver uma paisagem, descobrir pormenores do comboio, tirar fotos. Ou seguir a música: o grupo passa de carruagem em carruagem e há quem vá atrás como se este fosse o flautista de Hamelin. São duas canções em cada carruagem, dizem-nos entre “actuações”, sempre a mudar o reportório — que, porém, se esgota rapidamente, e ainda hoje temos na cabeça “vai tu, vai tu, vai ela, vai tu p’ra casa dela” (e não nos queixamos). “É trabalho e é prazer. É alegre e quando as pessoas alinham, é bom.”

Maria Esmeralda Pereira alinha: gosta de cantar e não evita as palmas e sorriso rasgado. “Já ia para aí dançar.” Veio com a família, filhos, noras, netos, de Barcelos, e está pela primeira vez no Douro. “Viemos andar de comboio e aproveitamos para conhecer”, conta. Um dia apenas, mas “um programa diferente”. E “um pouco caro”, reconhece Cecília Pereira, a nora, “estas coisas são sempre caras e já o tínhamos em conta”. Chegaram a ver os pacotes especiais da CP, que combinam a viagem no comboio histórico com a viagem de (e para) qualquer zona do país, mas não aproveitaram porque “tinham de sair muito cedo e tinham pouco tempo para transbordos”. Mas até há mimos inesperados neste comboio histórico: avançam cestos com rebuçados da Régua. “Quanto é?” “Nada.” Rebuçados para todos, e também água e um cálice de vinho do Porto. “Dê-me três”, ouve-se de um grupo que brinda para uma foto.

E é com o copo na mão que chegamos à primeira paragem, na estação do Pinhão, que, precisamente, se desenvolveu com o comércio do vinho do Porto — e os seus azulejos contam a história do ciclo do vinho do Porto, das vinhas até aos barcos rabelos. Paragem breve, 20 minutos, que alguns aproveitam para uma visita rápida à loja da Wine House, enquanto outros se instalam nas mesas e bancos corridos da esplanada que por estes dias promove “white Porto with lemon ice”. Maria Sofia, três anos, só quer caminhar. Veio com a mãe, Mónica Oliveira, e esta é uma espécie de viagem iniciática. “Sou de Lamego, vivo em Vila Real e sinto necessidade de fazer estas viagens pelo Douro”, conta  mãe, “e como ela é pequenina quero transmitir-lhe esta paixão”. “Já o ano passado viemos, mas em comboio normal, fomos até ao Pocinho e voltámos para a Régua”. Hoje teve sorte: “Comprei o último bilhete.”

Agora é o “Malhão” a banda sonora que invade a estação, mas a verdadeira invasão será na volta, quando o Grupo de Cantares Regionais de Fornelos mostrar que também sabe dançar. As três mulheres do grupo abandonam os instrumentos e da plataforma fazem salão de baile, perante o olhar surpreendido de turistas que se aproximam para ver e perante o entusiasmo dos viajantes ferroviários: as máquinas fotográficas erguem-se em modo de vídeo, marca-se o ritmo e os mais ousados juntam-se no bailarico improvisado.

Entretanto já fomos a Tua e vimos o rio Douro alargar-se enquanto a paisagem vai perdendo os socalcos e retorna à sua forma primitiva, mais rugosa, feita de rochas. À chegada à estação de Tua, há quem recorde os tempos em que aqui faziam transbordo para os comboios em direcção a Bragança, tempo curto para demasiadas malas de férias de Verão que duravam um mês. O bulício de então é a mansidão quente de agora, quebrada apenas pela nossa chegada. A música, uma vez mais, a abrir caminho até a um pavilhão que em dias de comboio se transforma em montra para produtos regionais — sobretudo, queijos, enchidos, compotas e vinhos, claro, com provas incluídas. Do outro lado da linha, Frederico Silva, no restaurante Calça Curta, vai aviando cervejas, vinho branco e sandes em pão de Favaios, e debitando curiosidades sobre a zona (“Sabe onde nasce o rio Tua? Debaixo da ponte de Mirandela.” – senhor Frederico, afinal, nasce uns quilómetros a norte de Mirandela).

As turistas brasileiras que entraram na Régua arrastando malas já saíram, Cura, a cadela dálmata de pouco mais de um ano que chegou numa caixa mas logo saiu dela, segue pachorrenta, Leonor, de oito meses, não se lembrará da sua primeira viagem de comboio mas a mãe será a sua memória e Joana Pereira, cinco anos, ainda está mais animada agora do que no início do passeio. Na outra margem, “a melhor estrada do mundo para conduzir”, exibe o seu equilíbrio, exacto ao que parece, entre rectas, curvas e paisagens deslumbrantes e, deste lado, diz-se adeus ao comboio da beira-rio. Mas já passa das 18h, as luzes do comboio acendem-se. Régua é já ao virar da curva e tudo termina como começou: com rebuçados e música — sempre a música. “Ora adeus, adeus, adeus, ora adeus que assim me vou...”

Comboio Histórico do Douro

As viagens no comboio histórico prolongam-se até 31 de Outubro, ao sábado, e até 4 de Outubro ao domingo. O percurso Régua-Tua-Régua, com paragem no Pinhão, dura 3h10 — partidas às 15h22 e chegada às 18h32. O preço é 35€ (15€ para crianças entre os cinco e os 15 anos) e há pacotes especiais (comboio histórico + viagens todo o país) com preços entre os 40€ e 70€, dependendo da zona.

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