O comboio já está atrasado mas ninguém parece preocupado. Brinca-se com o atraso: “Mas quando é que um comboio sai atrasado?”, ironiza alguém. É que numa altura em que se busca a velocidade máxima, quem viaja neste comboio sabe que a (relativa) lentidão é velocidade máxima. E, na verdade, todos parecem estar ocupados, disparando fotos do comboio, da plataforma — e não faltam os selfie sticks a saírem das janelas. O Grupo de Cantares Regionais de Fornelos, em trajes típicos (elas de saia comprida, blusa larga, meia branca, chinelo e lenço na cabeça; eles de calça, camisa e colete — chapéu opcional) já desfila, incansável, pela plataforma, vozes, cavaquinhos, pandeiretas, ferrinhos, bombo, acordeão, a entoar “nas voltinhas do Marão, ai as voltas que eu fui dar, ai ai ai encontrei com quem casar...”, com uma vendedora dos célebres rebuçados da Régua a liderar o cortejo.
E, entretanto, ainda há quem tente arranjar lugar no comboio iludindo a casa de partida, que é como quem diz, a bilheteira, onde nos dizem que o comboio está esgotado “e já 50 pessoas foram para trás”. “Olhe, aquelas duas meninas também queriam”, apontam-nos. A família holandesa que esperava pacientemente desistências teve mais sorte: a insistência da guia que a acompanha, já na plataforma, acaba por valer-lhes lugares.
Este tipo de azáfama na estação da Régua já é habitual durante o Verão, quando o comboio histórico do Douro faz as suas viagens até ao Tua e regressa, sempre com paragens no Pinhão. Este ano a temporada começou em Junho e vai até final de Outubro, sendo que desde meados de Agosto tem dose dupla, ou seja, às saídas ao sábado juntam-se as ao domingo. É sábado e o espectáculo habitual está montado, à margem do serviço normal da CP — e à margem de locomotivas e carruagens abandonadas, uma imagem que veremos repetida.
Afinal, longe vão os tempos áureos da Linha do Douro, construída entre 1875 e 1887, no que foi um esforço de engenharia notável dada a caprichosa geografia do território — os mesmos caprichos que o tornaram mais de um século depois Património Mundial da UNESCO e que em grande parte justificam estas viagens com cheiro a passado. Ainda que não totalmente. As carruagens, cinco, são do início do século XX, mas a locomotiva não é a vapor, é a diesel, de 1967. “A locomotiva puxada a diesel não se coaduna com isto”, há-de criticar Jorge Franco, 58 anos, vindo de Tomar, “e o revisor devia estar vestido à época”.
Não que não goste da experiência e que não tenha viajado no tempo, ele que até “ia num [comboio] destes para a escola”: na estação do Pinhão confessa que a animação é boa, “liberta as pessoas”, e “o comboio é bonito”; mas ele é “amante de comboios”, já viajou noutras composições históricas, na Suíça, e leu sobre o que se faz em países como os EUA. “Quanto mais genuíno, mais pessoas vêm. Há quem viaje só por isto. E já viu que há muitos estrangeiros?”
Rebuçados e Malhão
Voltamos ao início, à partida da Régua, e soltam-se mais ironias à custa da vetustez das carruagens. “Isto hoje está quentinho. Alguém ligou o ar condicionado?” Janelas abertas logo à partida: primeiro o apito, depois o solavanco e lá vamos nós, por este Douro acima, com este Douro ao lado. Do lado direito do comboio, mais precisamente, na margem direita do Douro. Primeiro as três pontes da Régua, depois o rio a parecer impossivelmente estreito para o sobe e desce de barcos turísticos — literal já aqui à frente, na barragem de Bagaúste, com as eclusas a ajudá-los a ultrapassar o desnível.