À porta, encontramos Mary, uma das almas da casa, a esmerar-se a escrever numa ardósia. Amor, paz, prosperidade. Coisas simpáticas em tempo de Boas Festas. Mas nem era preciso. É que, mesmo fora de festas, todos os clientes serão sempre recebidos com as mais perenes palavras Amor e Arte, pintadas no frontispício da antiga Fábrica de Queijadas Finas Mathilde, outrora uma das rainhas das queijadas nos tempos em que Sintra ainda era Cintra. As artes da Mathilde terão começado por volta de 1850 e a fábrica, que é agora casa da Saudade, começou o seu labor por volta de 1889. Ainda produziria muita e muita queijada até a modernidade lhe fechar as portas circa revolução de Abril. Deixou, claro, saudades. E deixou o edifício em processo de ruína, embora uma parte ainda tenha acolhido outros negócios, como (nem de propósito) uma agência de viagens.
A nova revolução e novas queijadas, porém, chegariam no Verão de 2009. E Sintra pôde então reciclar as saudades da Mathilde e vê-la renascer como novo ex-líbris sintrense em forma de Saudade. Uma esplendorosa reconstrução de cuidado extremo no detalhe que alberga neste vasto e acolhedor labirinto de salões, salas e salinhas, um espaço que mescla cafetaria, salão de chá, galeria de artes e ofícios, prataria e loja.
Sem nostalgias bacocas, esta muito aconchegante Saudade vive-se no presente, logo com traços de contemporaneidade, e é obra de consciência assinada pelo casal Mary, enfermeira de profissão que aqui cuida de nós todos, e Luís, historiador; ambos com negócios e interesse em pratarias e artesanatos. E é fruto de um conceito, sublinhado no próprio baptismo: Saudade - Vida e arte do povo português. "Aqui é tudo (ou quase) da região de Sintra e de Portugal, procuramos e apresentamos o melhor que encontramos", garante Luís, que sublinha que todo o espaço "foi recuperado com materiais da zona", até porque "nada do que se vê existia aqui, é tudo original" ("à excepção de um par de portas").
E, por aqui, não há peça que não conte uma história. Sala a sala, é admirar o primoroso chão de pedra, as mesas art déco com tampo de mármore - algumas vindas de antigas tabernas, as cadeiras e cadeirões recuperados daqui e dali, as grandes janelas, as estantes e armários de antigas mercearias, a electrificação moderna mas que corre nas calhas da antiga, os candeeiros, o balcão de recepção vindo de uma padaria da Chamusca ou o balcão da sala de serviço feito com madeira vinda da Baixa Pombalina, onde fumegam chás prontos a servir e luzem pequenas grandes maravilhas em forma de bolos, bolinhos, queijadas, scones...
O labirinto da Saudade (um obrigado a Eduardo Lourenço pelo título) começa no salão de entrada, espaço confortável abençoado por um tecto que oferece uma resplandecente e angélica pintura a óleo do século XIX. Oferece mais: o artesanato português brilha no seu respeitável armário, destacando-se os belos bonecos de olhos esbugalhados do artesão de Barcelos Manuel Macedo. É também sítio ideal para ficar com os mais pequenos - há umas mesinhas com brincadeiras e até um serviço de chá à medida para se entreterem. Ao fundo, uma mesinha isolada, romântica, ao lado de um móvel que estava a transformar-se em mini-biblioteca.
Depois, digamos que a Saudade se divide em duas partes. Na ala esquerda, sucedem-se as salas e os recantos a pedirem umas estadas prolongadas para saborear a ementa, recheada de itens nacionais com a promessa de quantidade e qualidade. A última sala é particularmente acolhedora (até porque era onde funcionava antigamente o forno), com sofás e cadeirões.
Na ala direita, sucedem-se as salas e espaços com produtos em exposição e venda. Desfilam artesanato de Montemuro, obras de artesãos locais, fotografias antigas de figuras portuguesas (Luís colecciona fotografia), peças de Bordallo Pinheiro (mestre omnipresente, incluindo na azulejaria ou em peças de serviço de mesa) ou mercearias clássicas da região e do país (vinhos de Collares, bolinhos e conservas tradicionais).
Há uma salinha destinada à venda de prataria e ainda uma outra, que é a jóia da coroa: a sala onde ficavam as antigas salgadeiras da fábrica, que serviam de armazém ao queijo fresco, dispõe agora as suas pias e bancadas à exposição e venda de artesanato contemporâneo. As artes não se ficam por aqui, já que a Saudade também programa vários eventos culturais, incluindo alguns concertos intimistas (com jazz ou fado em destaque).
O traço comum? Chamemos-lhe, subjectivamente, bom gosto. E uma visível inteligência. Depois há um mundo de pormenores a descobrir, até nas casas de banho, com as suas paredes descarnadas e um átrio com um fundo, fundo poço (protegido, claro).
E depois disto tudo ainda se pergunta por que razão foi a casa baptizada de Saudade? "Porque é uma palavra bonita", responde Mary, que, afinal sabe muito da arte da saudade, sendo filha de minhotos com boa parte da sua vida passada nos Estados Unidos. E ao peito, Mary traz mesmo o coração da Saudade: o logótipo da casa é uma estilização (por obra dos criadores dos venerados cadernos Serrote, que também assinarão o menu) dessa sua jóia.
A ementa da Saudade
A grande força da Saudade está na confeitaria: há bolos caseiros à fatia, um já venerado bolo de chocolate, queijadas da Sapa (a mais antiga fábrica sintrense das ditas), scones (grandes e acabadinhos de fazer), cheese cake de frutos silvestres, tarte de limão merengada, travesseiros... Há ainda um belo pão de passas e nozes (uma delícia, inclusive torrado).
Nos chás, pode dedicar-se ao sempre fiel Gorreana ou às tisanas (camomila, cidreira, erva príncipe, hipericão do Gerês, etc.).
Vá pelo sumo de laranja, o clássico Mazagrã (refresco de café), capilé, groselha ou até, honra lhe seja feita, a um Ovomaltine.
E, já agora, não sair sem provar o shot Saudade. É uma doce nostalgia de groselha, vodka e batido de coco.
- Nome
- Saudade - Vida e Arte do Povo Português
- Local
- Sintra, São Pedro de Penaferrim, R. Dr. Miguel Bombarda, 6
- Telefone
- 212428804
- Horarios
- Terça a Domingo das 09:00 às 20:00
- Website
- http://www.facebook.com/CafeSaudade