Fugas - restaurantes e bares

  • Miguel Manso
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Comer como se estivéssemos às portas da coutada

Por Fortunato da Câmara ,

Ir até à Cavalariça em época de caça é ter acesso ao melhor da sazonalidade alentejana sem ter de fazer uma batida ou uma montaria. À mesa desta casa são as especialidades que nos guiam o paladar pelos coutos da planície

Nos princípios de 1700, a obra Corografia Portuguesa, do clérigo António Carvalho da Costa (vol. II, 1708), onde era descrita a topografia do Reino de Portugal, caracterizava a então "villa" das Entradas como uma terra "abundante de pão, gado & caça", situada a duas "legoas" (cerca de 12 quilómetros) de Castro Verde. Passados precisamente 500 anos desde que D. Manuel I lhe outorgou o foral (1 de Julho de 1512) que a fez sede de concelho até ao século XIX, é hoje apenas uma das cinco freguesias do município castro-verdense. Felizmente, o legado gastronómico centenário resistiu ao passar dos séculos, mantendo-a como um destino recomendável para os amantes de caça, dispensando-se actualmente as incursões no terreno para se passar directamente à mesa. 

O restaurante A Cavalariça é um dos poisos a ter em conta na região quando o calendário venatório marca o arranque de uma nova e abundante época de especialidades mais ou menos selvagens. Já se sabe que o aumento da procura, por um lado, e a escassez de oferta, por outro, obrigam a guardar parte das caçadas em arcas congeladoras para assim satisfazer os apetites da clientela ao longo do ano.

Muita "caça" é hoje feita de forma controlada em herdades que garantem um determinado número de "troféus" durante as batidas. São largadas de encomenda, feitas com exemplares criados num regime a meio caminho entre o aviário e o semi-extensivo, muitas vezes em grandes propriedades do outro lado da fronteira. Particularidades que têm modificado a forma como se caça e a própria experiência gustativa de alguns pratos, sobretudo das aves. No entanto, continua a ser um prazer partir em busca de sabores de carne mais intensos quando o Outono se começa a desenhar. Foi o que se procurou encontrar numa visita semanal efectuada a esta "cavalariça", que afinal está instalada no celeiro de um antigo complexo rural, mesmo ao lado da loja onde antes se iam ferrar cavalos. 

Estava um daqueles dias em que se sente a secura soalheira tão característica do Alentejo. As ruas imaculadamente típicas e desertas da localidade de Entradas eram o convite implícito a um almoço pachorrento. Visto de fora, o restaurante é uma discreta casinha térrea tipicamente alentejana. Um espaço de café para tomar "um copito ou refresco" - como ainda se usa dizer por estas bandas - antecede o salão de refeições de aparência simples, mas cuidada, com o tecto em madeira e de traves visíveis num pé-direito amplo. Tudo tranquilo como era expectável, apenas uma mesa ocupada com um casal.

Pouco movimento para um espaço que se foi revelando uma agradável surpresa, começando pelo serviço executado em jeito familiar por duas jovens amáveis, bem-dispostas e que acima de tudo sabiam acolher, sem descurarem nas suas tarefas à medida que a sala se ia preenchendo de clientes ao longo da refeição. 


Destino a ter em mira

As entradas que a lista propõe revelaram ter tanto de simplicidade como de categoria, como se aferiu logo com o pão (1,30 euros), de grande qualidade (como seria expectável), e a fazer jus ao prestígio histórico da terra. Vieram também umas belíssimas azeitonas (1 euro), sumarentas, de curtimento natural, e a preservarem quanto baste a adstringência própria, e ainda um "queijo de cabra fresco" (3 euros) de sabor suave e cura de impecável equilíbrio.

A carta de vinhos é assumidamente alentejana (11 brancos e 16 tintos), abrindo apenas duas excepções para vinhos verdes. Infelizmente, as opções propostas estão pouco pensadas para enaltecerem os pratos de caça do menu. Os preços são em geral aceitáveis, sendo o único caso disparatado o de um Monte da Ravasqueira (de gama baixa) a 28 euros (!) - com margens de lucro na ordem dos 600% é coisa para ficar na prateleira ad aeternum... De salientar também a ausência de datas em alguns itens, falha que é facilmente ultrapassável. No capítulo do serviço são cumpridos os mínimos sem sobressaltos.

A atenção máxima virou-se para o desfile de caça que começou com a "açorda de perdiz" (30 euros/duas pessoas) que trazia um exemplar de qualidade mais "aviárica" que "selvagem", dividido ao meio, que depois de cozido foi devidamente acerejado para ganhar cor. Além da carne vir um pouco seca, a quantidade de alho onde foi alourada parecia mais indicada para prolongar a vida a cardíacos. Este excesso quase fez sucumbir os coentros que, mesmo marcando presença em abundância (como é apanágio da cozinha local), se revelaram de sabor discreto ao temperarem o muito agradável caldo de cozedura da ave, que iria ensopar as fatias de pão já dispostas no prato, ou seja, a açorda apresentada no seu estilo regional. Mais próxima de uma caçada em solo alentejano estava a "lebre com feijão" (14 euros), a desfiar dos ossos com grande delicadeza, de sabor intenso, acompanhada de feijão branco, nabos, e um vistoso naco de toucinho. À parte lá vinha um reconfortante caldinho da cozedura, aromatizado com hortelã. 

Outro passo seguro foi a meia dose generosa do "javali estufado" (14 euros ou 9 euros), de preparação prolongada, sem a indesejada acidez que por vezes esta carne transporta, mas mantendo o seu sabor profundo e único. Condimentado de forma sábia com especiarias como o cravinho e a noz-moscada, e ervas aromáticas como alecrim, vinha guarnecido com nabo, cenoura e alho-francês. Um conjunto saboroso e com personalidade que quase nos transportava para um fim de tarde numa coutada. 

Já com pouca margem para a parte doceira, ainda se experimentou a "encharcada" (3,50 euros), que, além de doce de ovos e canela, vinha enriquecida com amêndoa, ficando ainda mais portentosa, mas de sabor e consistência perfeitas. Muito boa também a "tarte de requeijão" (3,50 euros), de massa quebrada fininha e com firmeza suficiente para aconchegar o recheio enqueijado e macio feito com matéria-prima ovina produzida nas redondezas. 

Da lista podia pedir-se também umas burras no forno (bochechas de porco), um clássico ensopado de borrego ou o popular cozido de grão. Pratos como o borrego de caldeirada, a sopa de cação, ou a pá de porco preto com castanhas são servidos em meia dose. O que não deixa de ser inusitado é ver na carta a designação de "entrecosto de porco branco", para o diferenciar do chamado "porco preto" que devia ser descrito apenas como porco de raça alentejana (sus mediterranicus), sendo isso que o diferencia da maioria dos outros porcos (sus domesticus), e não a cor. A ementa contempla ainda mais algumas sugestões para grelhar à volta do porco e até uma deslocada posta mirandesa.

No entanto, o foco está nas especialidades de caça, que satisfazem os apreciadores e onde ao longo da época vão sendo acrescentadas outras peças, como o coelho bravo frito ou a açorda de fraca. Começar por estas Entradas não é um aperitivo, mas um destino a ter em mira se o alvo forem os prazeres da caça sem que tenhamos de entrar em nenhuma coutada.

Nome
A Cavalariça
Local
Castro Verde, Entradas, R. Escudeiros, 3
Telefone
286915491
Horarios
Terça a Domingo das 12:00 às 14:30 e das 19:00 às 22:00
Preço
20€
Cozinha
Alentejana
Espaço para fumadores
Não
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