Fugas - restaurantes e bares

  • José Carlos Farinha

Um Viajante a leste, no paraíso

Por Raquel Ribeiro ,

Com uma estrela Michelin (e entrada em 2012 para o 80.º lugar da lista dos Melhores Restaurantes do Mundo), Nuno Mendes, o chef português radicado em Londres, prossegue a odisseia do seu restaurante Viajante, aberto em 2010 no leste da capital britânica. Aqui não se vai simplesmente para comer, mas para viver uma experiência gastronómica invulgar e de grande beleza.

Chegamos e ainda é dia, as luzes do bar reflectem o sol, raro, neste frio Inverno em Londres. Mas quando a noite cai, com ela descem as luzes e ficamos na penumbra quente do bar de tons cobre, madeiras e amarelos, à espera do chefe, Nuno Mendes, um português de 37 anos, que ganhou uma estrela Michelin em Janeiro com o seu restaurante Viajante, aberto há cerca de um ano no leste de Londres.

Mendes chega e pede um avental emprestado a um dos seus chefes, para a fotografia. Mas a verdade é que não o tirará mais durante a noite.  O Viajante é composto por um bar e duas salas médias, decoradas de forma sóbria e elegante com linhas rectas ao estilo dos anos 70, quase escandinavas, pelo colectivo de arquitectos Rare, em tons de azul-pó, e uma enorme cozinha aberta que se debruça sobre as mesas, que nos dá a sensação de estarmos quase a comer em casa. Em Março de 2010, o Viajante instalou-se aqui, num edifício clássico e imponente da antiga câmara municipal de Bethnal Green, agora também transformado em hotel.

Nuno Mendes não é um simples desconhecido na cena gastronómica britânica. Esteve no Bacchus, o muito aclamado pub gastronómico também no leste de Londres, onde era sócio, e que lhe deu notoriedade pelos pratos inovadores. Depois criou o Loft, um restaurante privado em sua casa aonde os clientes iam "às escuras" sem saber o que o chefe lhes tinha preparado para essa noite. A crítica rendeu-se e Mendes começou a trabalhar para criar, de raiz, o seu restaurante. "Queria que o nome Viajante ficasse assim, em português. O nome diz muito do que eu sou", explica.


Chegar à cozinha por um atalho

Nada fazia prever que um jovem estudante de Biologia Marinha desistisse do seu curso para ir estudar gastronomia na California Culinary Academy, em São Francisco. "Cheguei à cozinha por um atalho", diz. Entre um curso e outro, Mendes conta que o pai lhe perguntou se não queria trabalhar durante uns meses na quinta da família no Alto Alentejo. "É uma quinta ligada à produção dos alimentos, sobretudo de leite, tínhamos várias cabeças de gado e uma enorme produção de vegetais, também." Trabalhar com a origem dos alimentos mudou-lhe a percepção das coisas. "Deu-me muita experiência para a cozinha, ajudou-me a compreender melhor o meu trabalho e os alimentos", explica.

Do pasto ao prato, seguiram-se vários trabalhos nos EUA e na Europa, na Ásia, incluindo com Jean Georges em Nova Iorque, no Coyote Cafe em Santa Fé, Califórnia, e um estágio no El Bulli, com o chefe catalão Ferran Adrià. Mendes sublinha que foi apenas um "curto" estágio, apesar de reconhecer como o chefe catalão tem apadrinhado uma série de cozinheiros que, voando de forma independente, têm coleccionado prémios e estrelas Michelin. Mendes pode ser um deles, mas, afirma, os dois têm "pouca afinidade". "Trabalhei na sua casa, como estagiário, por pouco tempo. Aprendi bastante, mas o principal que aprendi foi que, a certo ponto, ele se perguntou a si próprio, e eu também me perguntei a mim mesmo: o que é um restaurante? O que é que um restaurante tem de ser e o que é que pode ser? Acho que é preciso dar asas à imaginação e fazer de um restaurante aquilo que cada um entende, em vez de seguir um padrão do que já é mais corrente. No fundo, é criar uma coisa nova."


A leste, tudo de novo

Estas viagens de descoberta de várias gastronomias trouxeram experiência à sua cozinha, diz Mendes, "mas também memórias: a cozinha do Viajante não é uma cozinha portuguesa ou inglesa, é precisamente a cozinha do viajante". "Essas experiências todas estão muito marcadas na minha cozinha, que são um reflexo do que eu sou."

O que é que pode ser alentejano ou totalmente asiático quando comemos no Viajante? "O uso do pão, por exemplo, é extremamente alentejano, é um ingrediente que uso bastante, o pão na cozinha. A mistura do mar e da terra é uma coisa muito portuguesa também. Aqui a carta está sempre a mudar, mas é um menu do mar (e campo), com um toque citadino porque é também um reflexo de onde estamos. É um apanhado do que eu sou, do sítio onde estamos e das experiências que vivi. O uso do peixe é, de facto, uma coisa muito portuguesa, mas a forma de tratar o peixe pode ser japonesa ou asiática, servindo o peixe de uma forma quase crua, por exemplo. Deixar o produto o mais natural possível."

Nuno Mendes foi um viajante à volta do mundo mas foi na capital britânica que decidiu assentar. Mas não é bem Londres; é uma Londres muito particular: o leste. A sua cozinha, diz, tem a ver com "East London". "É cosmopolita, multicultural, artística, tem um aspecto poliglota. Mas também jovem e divertida." Bethnal Green pode não dizer muito ao turista português que conhece a Londres do Buckingham Palace, do Big Ben, do London Eye ou do Parlamento, mas para um londrino o Leste pode muito bem ser a quintessência da cidade.

No século XIX, de Whitechapel para lá era quase tudo favela. Mas é aqui que se concentram as comunidades imigrantes durante todo o século XX, judeus em Liverpool Street e Aldgate, paquistaneses, indianos e bengaleses em Brick Lane, caraíbas e anglo-africanos em Hackney. Hoje, no Leste, zonas como Hoxton, Shoreditch, Hackney e Bethnal Green são o coração da Londres multicultural, onde pequenos restaurantes que servem aromáticos caris alternam com cafés boémios frequentados pelos tipos criativos da cidade - designers, artistas, músicos, jovens hipsters que transformaram uma zona impermeável de Londres no lugar onde toda a gente quer estar.

Clientes gourmet atravessam a cidade para vir ao Viajante. Nuno Mendes explica: "É um restaurante de destino. Mas também há muita gente daqui, do mundo artístico desta zona." O Viajante é um restaurante fora dos roteiros turísticos, longe do elitismo do Mayfair ou de Chelsea, é "muito mais real", diz Mendes. Do Bacchus até ao Loft, os restaurantes por onde tem passado "têm sido muito característicos" da zona onde estão. No Viajante, Mendes quis fazer um restaurante "que reflectisse a maneira" como vê a gastronomia moderna. "Enquadra-se bem com a zona: tem um lado artístico, inspira as pessoas, mas ao mesmo tempo é informal, é diferente do habitual, é jovem, arrisca. Adiciona algo à cena gastronómica de Londres mas está enquadrado."


Como em nossa casa

No fundo, o Viajante é uma continuação do projecto anterior do chefe português, o Loft. Os supper-clubs são restaurantes privados onde um chefe (conhecido ou não) convida um reduzido número de pessoas para sua casa. Não são exclusivos, qualquer pessoa pode ir, desde que se disponha a pagar (em alguns casos, como o Loft, pode chegar às 100 libras) e a ter paciência com a lista de espera.

Quando o Loft abriu, em 2007, os supper-clubs ainda não estavam na moda. "Quando começámos, o impacto em Londres foi bastante significativo. Acabou por coincidir com o início da crise financeira e o Loft funcionou como reacção à crise: ao minimizar os custos e tentar oferecer uma experiência gastronómica comparável à de um restaurante, mas na minha casa." O menu não se sabe de antemão, é chegar lá e desfrutar da viagem. Como no Viajante, o menu está sempre a mudar: "O menu só se sabe quando se vai embora e leva consigo a lista do que acabou de provar."

Hoje o Loft é uma espécie de "galeria para cozinheiros", explica Nuno Mendes. "Devido ao sucesso que tivemos, queria dar oportunidade a outros cozinheiros de se expressarem da mesma maneira, de criarem, naquele espaço, e depois apresentarem as suas criações." É uma espécie de residência artística para cozinheiros. "Por isso lhe chamo uma galeria para cozinheiros, é uma galeria de arte para chefes, o que se expõe é a cozinha e, de cada vez, um chefe diferente."

O Loft desmistificou a ideia de que a alta cozinha é inacessível ao comum dos mortais: "Aqui não há elite, toda a gente pode vir." É o mesmo com o Viajante, apesar de o preço médio por refeição rondar as 80 libras (sem bebida). Mas a estrela Michelin vem mudar alguma coisa? A longo prazo será bom, explica o chefe, trará mais clientela. "É um reconhecimento importante, mas nunca foi o nosso objectivo chegar aí. A ideia, desde que começámos, foi apresentar um restaurante um pouco diferente, fiel ao estilo de cozinha que fazemos. Recebemos uma estrela, o que nos dá mais força e segurança para continuarmos o que estamos a fazer, e dá-nos aceitação do público em geral. Os nossos clientes gostam do que fazemos e, a pouco e pouco, estamos a ganhar um grupo de seguidores."

Nuno Mendes é cauteloso com as expectativas levantadas pela atribuição da estrela Michelin e afirma que não quer sucumbir ao "estrelato" do guia pondo em causa o conceito original do Viajante: "Há certas expectativas de um restaurante Michelin que não fazem necessariamente parte do nosso conceito. O nosso serviço, por exemplo, é muito informal, por escolha, porque é assim que gostamos de fazer as coisas. É um serviço mais descontraído e não tem aquela formalidade de outros restaurantes." É isso que os clientes apreciam no Viajante. E porque a cozinha é aberta, explica o chefe, é como se este restaurante fosse um prolongamento do Loft. O objectivo do Viajante foi agarrar na essência do Loft e trazê-la para um restaurante sem perder a sua personalidade. "Depois de ganhar intimidade com os meus clientes, quando vinham a minha casa, era muito difícil criar uma parede entre mim e eles." Por isso, os chefes vão à sala falar com os clientes. "É como se eles estivessem praticamente em nossa casa."


A beleza dos ingredientes

Mas em nossa casa o jantar não começa com uma "explosão tailandesa" (um pequeno cubo de pele de galinha crocante recheado de confit de galinha picante à tailandesa). É uma verdadeira explosão cremosa na boca que contrasta com o crocante da pele de forma sublime, que a Fugas acompanhou com um copo do branco Parés Baltà "Blanc de Pacs" (2010), recomendado pelo chefe.

No Viajante, a comida é um jogo mas não é preciso saber as regras todas. O chefe vem à mesa explicar o que vemos no prato, minimalista. Por exemplo, podemos provar "coração de alho francês queimado com pele de leite, emulsão de cinzas e avelãs". Apesar de não apreciarmos alho francês, Nuno Mendes conseguiu que a textura crocante das avelãs contrastasse na perfeição com o sabor quase cremoso do alho francês e com a textura rugosa da emulsão de cinzas. Para este prato, o chefe recomendou o vinho branco Birgit Eichinger Gruner Veltliner "Strass Hasel" (2009).

Noutro prato, com precisa atenção ao detalhe, "vieiras com tiras de cenoura (crua e em pickle) e pó de mostarda". O chefe verte um molho de agrião e recomenda misturar, com a colher, o pó de mostarda com o líquido. O verde do agrião explode de amarelo quando toca no pó de mostarda e, na boca, o molho quase gelado contrasta com a suavidade da vieira e o doce ligeiro da cenoura.

Nuno Mendes explica que "para podermos introduzir ideias novas e conceitos novos em culinária é preciso que as pessoas estejam descontraídas". "É isso que oferecemos aqui: não há menu, a pessoa não sabe o que vai comer, pede um certo número de pratos. Não vai às escuras, mas é uma aventura, é viver a experiência gastronómica. Não é só "alimentação"."

O menu está sempre a mudar. O cliente pode escolher um total de seis, nove ou 12 pratos por noite e deixa-se nas mãos do chefe. Por exemplo, um prato novo ia começar na noite em que a Fugas visitou o Viajante: "Navalheiras com tinta de choco bem fria e coração de aipo."

Nuno Mendes gosta de tirar partido dos ingredientes e rentabilizá-los "em termos de sabor, de textura, na relação uns com os outros". "A nossa cozinha tem vindo a ficar cada vez mais simples, de produto, e os ingredientes são cada vez menos preparados. A nossa cozinha é muito influenciada pela mistura de ingredientes, a combinação de ingredientes um pouco fora do vulgar, que uma pessoa não encontraria noutro lugar. Quando à preparação, é muito purista. O nosso objectivo é deixar o produto o mais puro possível, ao natural, para realçar a sua beleza."

A beleza está aqui: uma sobremesa elegante de crema catalana servida num copinho de vidro, acompanhado de uma pequena esponja de clementina, cítrica e doce, terminando com uma perfeita trufa de chocolate branco. Somos convidados a brincar com estes sabores, experimentando uma pequena colher de cada vez, criando a nossa própria experiência gastronómica.

Vários críticos no Reino Unido dizem que a cozinha de Nuno Mendes é fine dinning in trainers, alta cozinha num ambiente descontraído. O chefe português não gosta muito da expressão, mas não nega que essa é a direcção natural da restauração. "Não estamos muito fora da regra. Talvez as pessoas pensem que isto é muito diferente, mas creio que é uma evolução natural. Já não é necessária muita ostentação na cozinha, há menos separação entre o cliente e quem está a servir, o ambiente é muito mais familiar e relaxado. Sinto-me muito mais à vontade num ambiente em que as pessoas me tratam de forma descontraída do que se estiver numa situação muito formal."

Mas diz-se da cozinha do Viajante que ou se ama ou se odeia. Nuno Mendes justifica: "É muito diferente. Na textura, nas combinações, na temperatura, na maneira como os ingredientes são expostos. É uma cozinha em evolução. Não há pratos de assinatura. Tem a ver com a natureza, com o mundo, com a própria cidade, estamos sempre em movimento. Os produtos mudam e gostamos de nos adaptar a isso. Mas é essa a experiência que as pessoas querem, personalizada. A nossa cozinha dá a conhecer quem somos. Se cá vier jantar, talvez fique a conhecer-me um bocadinho melhor através da minha comida."

Nome
Restaurante Viajante
Local
Estrangeiro, Grã-Bretanha, Londres E2 9NF - Patriot Square (Bethnal Green)
Telefone
+442078710461
Cozinha
Autor
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