E por que falamos disso agora, que estamos neste espaço transparente do centro do Porto? Porque ele é o culminar da caminhada que começou aí (na verdade, um pouco antes, mas isso já seria entrar na arqueologia), na descoberta e valorização da cultura tradicional portuguesa: sobretudo aquela que sai das mãos e imaginação de tecedeiras e bordadeiras. "Este é o último esforço de não deixar morrer a cultura popular portuguesa", afirma Maria Helena. E esta é uma homenagem a todas as mulheres que ainda a carregam diligentemente e com quem tem trabalhado constantemente nestes anos na preservação e reinterpretação da tradição têxtil nacional.
"Apercebi-me que trabalhei sempre com mulheres", refere ("as aldeias", reflecte, "praticamente não têm homens, têm velhos") - e está explicado o nome deste "espaço polivalente": No Feminino Com. Aqui não trabalha só com mulheres - são cinco sócios, entre eles dois homens - mas encontramo-la com Francisca Ferreira Alves, sócia e neta, unidas por este sonho (não é excessivo: basta ouvir Maria Helena contar as suas histórias, que são as histórias de todas as mulheres que conheceu e com quem trabalhou, para o perceber) que se corporizou há seis meses e se concretiza todos os dias.
Em No Feminino Com entramos como se não saíssemos do jardim em frente - a calçada portuguesa invade a sala, estreita e comprida, há folhas que se balançam ao ritmo das aragens que correm pela porta aberta. Estão penduradas, transparentes, e é à noite que se intrometem mais, quando a iluminação suave as desfaz em mil reflexos nas paredes.
Não são só elas que são transparentes: transparência aqui é um imperativo programático e pragmático, para dar mais amplitude ao espaço. As vitrinas são caixas imaculadas, os tampos das mesas parecem levitar seguros apenas pelos pequenos vasos com flores, o balcão da caixa só existe pelo que tem sobre ele e até o balcão do bar - de um verde limão e aspecto rústico - tem janelas para o interior. Antes esteve numa cafetaria em Braga, foi recuperado assim como as cadeiras (irmanadas duas a duas) de "fin de siècle", vindas de um antiquário e restauradas sem o peso da idade. O candeeiro que parece vidro mas afinal é plástico também foi descoberto por acaso e agora está num canto do balcão, e o papelão que serviu para acomodar um dos utensílios novos da casa é agora uma espécie de escultura encostada a uma vitrina e a lembrar uma colmeia - foi Maria Helena a autora da decoração e destas apropriações imprevistas (ela que até foi responsável pelo design dos restaurante-bar 3C, também na baixa do Porto, propriedade de uma filha).
Lá fora, numa esplanada verdadeira vão-se sucedendo os clientes. Aqui dentro, o fim de tarde é tranquilo, com jazz a sair, suave, das colunas, e, a uma determinada hora, uma explosão de luz, quando o sol na sua trajectória descendente encontra espaço para entrar sem pedir licença. Há vinho a copo (por estes dias o "Prova Régia" suscita curiosidade) que é procurado nesta altura do dia (com petiscos paralelos) - e segue pela noite.
Porque se No Feminino Com nasce da vontade de preservar e divulgar a cultura portuguesa, "não fazia sentido que não aproveitasse a noite desta zona", concede Francisca Ferreira Alves. A avó concorda. "Gostava que este canto fosse de tertúlia", diz, "porque sou do tempo em que a seguir ao jantar todos saiam de casa e discutiam política ou cinema". Este nunca será (aqui apostamos que as aparências não iludem) um espaço noctívago por princípio (embora, haja uma certa distinção, como assinala Francisca Ferreira Alves, que se reflecte amiúde na música, que passa a ser um pouco mais comercial - sem perder muito de vista o que faz a identidade da casa: jazz, blues e clássica, sempre sem DJ), mas quer ser um espaço de convívio por excelência.
César Romão, o sócio mais vocacionado para a programação cultural, já percebeu que quem vem gosta de ficar. "Numa noite, é difícil termos segunda rodada de ocupação". Há quem chegue para jantar e saia já noite avançada. Há jantares com música ao vivo - já passou um saxofonista, por exemplo - e há noites temáticas - a mais recente de bossa nova. E há jantares temáticos, que fazem parte do projecto cultural da casa (com muitas iniciativas em conjunto com a vizinha Poetria).
É às quintas-feiras à noite que as tertúlias, com direito a convidados especiais, tomam conta de No Feminino Com - já houve homenagem a Federico García Lorca, noite de poesia árabe, noite de Camões - e quando é possível o jantar associa-se ao tema e tem um preço especial de "jantar-tertúlico", 15 euros. Nos meses de Verão, "de férias", vai haver uma pausa nestas iniciativas para reorganização e regresso em força marcado para Setembro - temas certos? A biografia das senhoras que se apresentam numa das paredes do espaço (já lá iremos).
E se o bar "está" ao fundo, é nas laterais que se desenvolvem a loja e a homenagem: uma parede para cada. Numa, retratos tamanho gigante em montagem com rostos de mulheres do Porto. "Mulheres importantes e mulheres de que ninguém fala." Guilhermina Suggia, Aurélia de Sousa, a "Ferreirinha", Rosa Ramalho (com um Cristo na mão, não uma das cabras que mais a celebrizaram), Carolina Michaëlis, D. Saozinha da Afurada, Sophia de Mello Breyner Andresen surgem-nos a preto-e-branco, figuras tutelares, reconhecíveis.
Do outro lado, as vitrinas da loja. E se o espaço é polivalente, a loja é dupla: livraria e artesanato - e este desenvolve-se numa espécie de tridente. Há o vestuário, inevitavelmente, porque, afinal, foi do têxtil que nasceu o projecto, há o figurado e há a ourivesaria. Homens e mulheres a trabalharem a tradição nacional, aqui apresentada em peças únicas e exclusivas de No Feminino Com. "E com dignidade", considera Maria Helena, que conta o espanto dos turistas quando entram no espaço e descobrem a "verdadeira cultura popular portuguesa".
Começamos por essas mulheres, anónimas da maioria, que, sob a supervisão de Maria Helena, trabalharam em peças de vestuário que incorporam um saber ancestral passado de geração em geração - por exemplo, quando Maria Helena chegou ao Montemuro descobriu que as mulheres ainda trabalhavam formas celtas - em design contemporâneo. Há vestidos de linho, écharpes e camisolas de linho e seda natural, bordados a lã - e é uma síntese do trabalho de artesãs da Serra d"Arga, da Freita, do Marão e de Montemuro. Mas há também t-shirts "com" aguarelas de Carlos Basto - várias leituras de um quase irreconhecível Galo de Barcelos, cenas de feiras e igrejas alvas; há saias que poderiam ter vindo de Londres (mas são da autoria de Helena Cardoso - é assim que assina as suas peças), de seda e formas e cores indecisas.
Depois há os barros, em obras figuradas que regressaram ao seu habitat natural - os brinquedos ("o figurado nasce dos brinquedos, depois foi desvirtuado", explica Maria Helena). O tema das "pitinhas" é omnipresente, seja no porco que é um apito, na cobra, no ouriço, no sardão verde e aspecto pré-histórico que também são apitos. Até na flauta transversal as galinhas estão presentes. A ourivesaria é brincos e colares delicados, de vários autores e materiais naturais.
Na livraria, vemos poesia e história, numa selecção pessoal e, obviamente, transmissível, de César Romão. E vemos livros infantis, com o selo da Kalandraka para histórias de agora e de sempre em edições cuidadas como verdadeiros álbuns. Na cave, a galeria ostenta a exposição "Condição Mulher", de Helena Granja, e à boleia daquelas telas de rostos femininos marcantes fez-se uma tertúlia - sobre o corpo da mulher - e uma descoberta - o espaço da galeria também se proporciona a "estar" e por isso vemos agora duas mesas montadas (e noutras ocasiões até mesas de jantar, para reuniões de amigos) e já se viram grupos de miúdos em torno de contadores de "estórias".
Não é Maria Helena quem o diz, é César: "O espaço foi feito como uma sala de visitas, a sala de Helena Cardoso, onde ela recebe os amigos". Rodeada de arte popular portuguesa, que ela não desiste de manter viva e não se cansa de mostrar. "Não merece o esquecimento em que caiu", sublinha a mentora de No Feminino Com.
Gastronomia também é identidade
Se No Feminino Com também é restaurante não surpreende a opção declarada pela cozinha portuguesa. É outro dos traços culturais que faz a identidade do nosso país, refere Maria Helena Cardoso, ela própria envolvida com a "cozinha" - directamente: os almoços de sábado têm a sua assinatura. É um "almoço de família", onde o "bacalhau desfeito No Feminino" (camadas de batatas, legumes, bacalhau, ovo) e a perna de peru assado, por exemplo, são presenças constantes. Nos outros dias, a rotina passa por dois cozinheiros: uma durante o dia, um durante a noite. Durante o dia, a cozinha começa com os pequenos-almoços, passa para os almoços (prato de carne, de peixe e vegetariano, mais sopa), lanches (com fatias de bolos caseiros, por exemplo, de figo, noz, laranja, especiarias, que agora também são vendidos em regime de "take-away", mediante encomenda). À noite, há lista. O preço do almoço é €5,50 (prato, apenas - a sopa é €1,60) que sobe para €6,50 ao sábado; o jantar fica entre €20 e €22 com vinhos e sobremesas - saladas de fruta, aletria, leite-creme queimado, mousse, tartes, cheesecake...
- Nome
- No Feminino Com
- Local
- Porto, Vitória, Praça Carlos Alberto, 89
- Telefone
- 222016618
- Horarios
- Segunda das 10:00 às 19:00
Terça-feira e Quarta-feira das 10:00 às 00:00
Quinta a Sábado das 10:00 às 02:00
- Website
- http://www.nofemininocom.pt